Nos fins de semana, São Paulo é uma ótima cidade para ficar em casa. Desde que se tenha uma casa. Fora, tudo está mais ou menos cheio. Os cinemas, os poucos parques, os restaurantes, as livrarias. Às vezes, vem a vontade insensata de sair de casa. Para passear. Ver alguma coisa. Comer.
O jornal anuncia que “O casamento de Figaro” abrirá a temporada lírica no Teatro Municipal. É um programa para uma tarde de domingo. Um bom programa. A música é de Mozart. O libreto, intrincado e divertido, de Lorenzo da Ponte. Pensando bem, são dois programas. O primeiro será comprar os ingressos e dar uma volta pelas redondezas. O segundo, a ópera propriamente dita.
Fomos então, Lina e eu, numa manhã de sábado, ao Municipal. Chovia. Chovia muito. Estava abafado. Ir de carro, nem pensar. Além do trânsito, não saberia onde estacionar. Não há metrô. Não há linha de ônibus de casa até lá. Vamos de táxi. Onze horas da manhã, estamos na porta do teatro. A bilheteria só abre às três da tarde. Estranho, por que só às três da tarde?
Visitamos o teatro, que é acanhado. Debaixo de chuva, vamos à Livraria Francesa, na rua Barão de Itapetininga. Fazemos hora, compramos dois livros, esperamos a chuva passar. Ela não passa. Atravessamos a praça da República, que está em obras, rumo ao largo do Arouche. Camelôs, sujeira, multidões, gente desdentada e malvestida, chuva. O restaurante que lembrava ser bom está fechado. Um outro, razoável, na esquina com a avenida São João, fechou de vez. Entramos num rodízio de carnes de péssima aparência. A comida faz jus à aparência. Em compensação, a conta saiu em quinze reais, com sobremesa e suco, e minha filha achou bom o restaurante.
São duas da tarde. Não há onde fazer hora. Ainda mais debaixo de chuva. Tomamos um táxi e voltamos para casa.
***
Em casa, constato que é possível comprar os ingressos pelo telefone. O número está ocupado. Ligo umas dezessete vezes. Sempre ocupado. Deu linha. Uma gravação pede que digite o número do cartão de crédito. Estou com o bicho na mão. A gravação pede o número do CPF. Não faço idéia onde esteja. Até achá-lo, a ligação caiu. Tenho sorte: são só seis ligações para obter linha. Digito tudo de novo. Pedem que aguarde. Aguardo. Vem uma voz feminina, mais mecânica que a gravação. Para a matinê do domingo da semana seguinte, só há lugares na galeria. Pergunto qual é o andar. É o terceiro, responde a moça. Dá para ver o palco. Dá, diz ela. É preciso repetir mais uma vez o número do cartão de crédito e o do CPF. Com as taxas, pago 78 reais por três ingressos. A compra telefônica levou três horas.
***
No domingo do espetáculo, Lina toma banho, se perfuma com lavanda, bota seu vestido cor-de-rosa preferido, os sapatinhos brancos e a tiara de bijuteria rosa que lhe comprei em Roma. Vamos de carro ou de táxi? Vamos de carro. É domingo, haverá lugar para estacionar, imagino.
Ao descer a rua Xavier de Toledo, sou saudado por uma chusma de andrajosos, que me orientam a ir com o carro para o viaduto do Chá. “Por aqui, doutor!”, me orientam. Orientado, paro o carro. “São quinze reais, doutor”. Quinze! “Vou pagar depois”, aviso. O sujeito explica que na saída, não tem como recolher o dinheiro de todos. Pago-lhe dez reais.
No teatro, ao pegar o ingresso, o funcionário avisa que devo pegar o elevador até o quinto andar. Mas não é no terceiro? Não, não é. No quinto andar, não há quem oriente. Bagunça. As pessoas das cadeiras pares trombam com as das ímpares. Estamos na quarta fila do quinto andar. Temos direito a ver um terço do palco, o que fica no canto da direita.
Em meio a um grande burburinho nas galerias, começa a ópera. Debruçamo-nos sobre o balcão. Não adianta. Lina vem para o meu colo. Não enxerga. Fica de pé. Enxerga um pouquinho.
Uma crítica do espetáculo elogiava os cenários, dizendo que eles eram econômicos. O cenário do primeiro ato é uma lona (mal) pintada. Ele não é econômico. É miserável. É a estética da fome sem política glauberiana. O som da orquestra é mirrado. As vozes dos cantores, à exceção de Cherubino, me pareceram pífias, não sei se devido à acústica, à localização ou aos cantores mesmo. Acaba o primeiro dos quatro atos. A única alternativa possível era sair. Saímos.
No carro, havia uma multa no pára-brisa. Os guardadores de carro desapareceram.
***
Uma sugestão para os atuais manda-chuvas da Prefeitura paulistana. Vendam o Teatro Municipal. Façam uma dessas privatizações bem marotas. Não há cabimento em mantê-lo. Por que fingir que ele é útil, pertinente? O Muncipal pode ser transformado num excelente camelódromo. Ou numa dessas cadeias de lojas populares, especializadas em arrancar o bagaço de quem não tem nada.
***
No final de março, o Teatro Municipal apresentará “A flauta mágica”, também de Mozart. Lina adora a ópera. Um amigo interpretará o papel de Papageno. Não irei vê-la. Ficarei em casa. Como um paulistano típico.
msconti@nominimo.ibest.com.br
O jornal anuncia que “O casamento de Figaro” abrirá a temporada lírica no Teatro Municipal. É um programa para uma tarde de domingo. Um bom programa. A música é de Mozart. O libreto, intrincado e divertido, de Lorenzo da Ponte. Pensando bem, são dois programas. O primeiro será comprar os ingressos e dar uma volta pelas redondezas. O segundo, a ópera propriamente dita.
Fomos então, Lina e eu, numa manhã de sábado, ao Municipal. Chovia. Chovia muito. Estava abafado. Ir de carro, nem pensar. Além do trânsito, não saberia onde estacionar. Não há metrô. Não há linha de ônibus de casa até lá. Vamos de táxi. Onze horas da manhã, estamos na porta do teatro. A bilheteria só abre às três da tarde. Estranho, por que só às três da tarde?
Visitamos o teatro, que é acanhado. Debaixo de chuva, vamos à Livraria Francesa, na rua Barão de Itapetininga. Fazemos hora, compramos dois livros, esperamos a chuva passar. Ela não passa. Atravessamos a praça da República, que está em obras, rumo ao largo do Arouche. Camelôs, sujeira, multidões, gente desdentada e malvestida, chuva. O restaurante que lembrava ser bom está fechado. Um outro, razoável, na esquina com a avenida São João, fechou de vez. Entramos num rodízio de carnes de péssima aparência. A comida faz jus à aparência. Em compensação, a conta saiu em quinze reais, com sobremesa e suco, e minha filha achou bom o restaurante.
São duas da tarde. Não há onde fazer hora. Ainda mais debaixo de chuva. Tomamos um táxi e voltamos para casa.
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Em casa, constato que é possível comprar os ingressos pelo telefone. O número está ocupado. Ligo umas dezessete vezes. Sempre ocupado. Deu linha. Uma gravação pede que digite o número do cartão de crédito. Estou com o bicho na mão. A gravação pede o número do CPF. Não faço idéia onde esteja. Até achá-lo, a ligação caiu. Tenho sorte: são só seis ligações para obter linha. Digito tudo de novo. Pedem que aguarde. Aguardo. Vem uma voz feminina, mais mecânica que a gravação. Para a matinê do domingo da semana seguinte, só há lugares na galeria. Pergunto qual é o andar. É o terceiro, responde a moça. Dá para ver o palco. Dá, diz ela. É preciso repetir mais uma vez o número do cartão de crédito e o do CPF. Com as taxas, pago 78 reais por três ingressos. A compra telefônica levou três horas.
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No domingo do espetáculo, Lina toma banho, se perfuma com lavanda, bota seu vestido cor-de-rosa preferido, os sapatinhos brancos e a tiara de bijuteria rosa que lhe comprei em Roma. Vamos de carro ou de táxi? Vamos de carro. É domingo, haverá lugar para estacionar, imagino.
Ao descer a rua Xavier de Toledo, sou saudado por uma chusma de andrajosos, que me orientam a ir com o carro para o viaduto do Chá. “Por aqui, doutor!”, me orientam. Orientado, paro o carro. “São quinze reais, doutor”. Quinze! “Vou pagar depois”, aviso. O sujeito explica que na saída, não tem como recolher o dinheiro de todos. Pago-lhe dez reais.
No teatro, ao pegar o ingresso, o funcionário avisa que devo pegar o elevador até o quinto andar. Mas não é no terceiro? Não, não é. No quinto andar, não há quem oriente. Bagunça. As pessoas das cadeiras pares trombam com as das ímpares. Estamos na quarta fila do quinto andar. Temos direito a ver um terço do palco, o que fica no canto da direita.
Em meio a um grande burburinho nas galerias, começa a ópera. Debruçamo-nos sobre o balcão. Não adianta. Lina vem para o meu colo. Não enxerga. Fica de pé. Enxerga um pouquinho.
Uma crítica do espetáculo elogiava os cenários, dizendo que eles eram econômicos. O cenário do primeiro ato é uma lona (mal) pintada. Ele não é econômico. É miserável. É a estética da fome sem política glauberiana. O som da orquestra é mirrado. As vozes dos cantores, à exceção de Cherubino, me pareceram pífias, não sei se devido à acústica, à localização ou aos cantores mesmo. Acaba o primeiro dos quatro atos. A única alternativa possível era sair. Saímos.
No carro, havia uma multa no pára-brisa. Os guardadores de carro desapareceram.
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Uma sugestão para os atuais manda-chuvas da Prefeitura paulistana. Vendam o Teatro Municipal. Façam uma dessas privatizações bem marotas. Não há cabimento em mantê-lo. Por que fingir que ele é útil, pertinente? O Muncipal pode ser transformado num excelente camelódromo. Ou numa dessas cadeias de lojas populares, especializadas em arrancar o bagaço de quem não tem nada.
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No final de março, o Teatro Municipal apresentará “A flauta mágica”, também de Mozart. Lina adora a ópera. Um amigo interpretará o papel de Papageno. Não irei vê-la. Ficarei em casa. Como um paulistano típico.
msconti@nominimo.ibest.com.br
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