sexta-feira, 17 de março de 2006

Frankfurt na favela - Mario Sergio Conti - no mínimo, 14.03

Max Horkheimer escreveu: “Todos aqueles cavalheiros e damas distintos não só exploravam continuamente a miséria dos outros, mas ainda produziam-na, renovavam-na para poder viver a sua custa e aprontavam-se para defender esse estado de coisas ao preço do sangue alheio, tanto quanto preciso fosse”. Mais: “no momento exato em que essa mulher se veste para um jantar, os homens nas costas dos quais ele vive tomam seu lugar no turno da noite, no mesmo instante em que beijamos sua mão suave, porque ela se queixa de enxaqueca, nos hospitais de terceira classe as visitas são proibidas depois das seis horas, mesmo para os moribundos”.

Horkheimer classifica o “porão” do edifício social de “matadouro”. Diz que “a maioria dos homens, ao nascer, entra numa prisão”, que “sem dinheiro, sem estabilidade econômica, estamos à mercê de uma ninharia. Naturalmente, isso significa uma servidão terrível: um esgotante trabalho forçado, a escravidão dos pequenos encargos, as mesmas preocupações dia e noite, a dependência das pessoas mais desprezíveis. E não só nós, mas ainda os que amamos e por quem somos responsáveis, que passam conosco sob a roda do cotidiano. Nos tornamos joguetes da estupidez e do sadismo”.

Horkheimer conhecia os ricos de perto. Ele era filho de um milionário. Com a dotação de um outro filho de milionário, ele reformulou e deu alento ao Instituto de Estudos Sociais, que teve sede em Frankfurt, com a ascensão do nazismo se transferiu para Genebra, depois para Nova York, depois para a Califórnia, e no pós-guerra retornou a Frankfurt. Na sua concepção, o Instituto deveria ser multidisplinar, se dedicar a pesquisas empíricas e à teorização. No Instituto, ou ao redor dele, se desenvolveram conceitos e categorias como teoria crítica, indústria cultural, dialética da iluminação, unidimensionalidade, dessublimação repressiva, personalidade autoritária.

O texto de Horkhemeir é de 1934, ano de crise aguda na Alemanha. Ele descreve a ligação entre o trabalho e a riqueza. O trabalho, depreende-se, é do operário, mas também dos funcionários, dos empregados do comércio, de suas famílias, e de todos eles sob a ameaça do desemprego, da insegurança.

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Horkheimer gostava de citar um trecho de Maquiavel, da “História de Florença”: “Examinem as maneiras de agir dos homens. Verão que todos aqueles que chegam a ter uma grande riqueza e um grande poder conquistam-nos graças à violência ou à mentira. Mas aquilo de que se apoderam, por esperteza ou à força, eles o enfeitam para disfarçar o lado desprezível de sua vitória: dão-lhe títulos enganadores de sucesso e êxito. Aquele que, por estupidez ou falta de oportunidade, evita esses meios, condena-se à pobreza e à servidão por toda a vida. Os criados fiéis continuam sendo sempre criados, e as pessoas continuam sendo sempre pobres”.

Hokheimer levou Maquiavel adiante: “Diante daquele que detêm o poder, a maioria dos homens se transforma em criaturas dedicadas, amáveis. Diante da completa impotência, como a dos animais, tornam-se tratantes e carniceiros”.

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Contemplem-se as imagens da ocupação de dez favelas cariocas pelo Exército. Num primeiro nível, o que se vê são jovens e crianças descalças, de bermudões e camisetas, donas-de-casa pobres e soldados mal-ajambrados, com fardas que lhes caem mal, desengonçados. Não são ferozes e rígidos, prussianos, e sim uma mambembe tropa tropical. Uns e outros pertencem ao mesmo ambiente social.

Num segundo nível, o que se dá a ver é uma notável construção social. Fugindo do trabalho inviável nas grandes proriedades rurais, migrantes nordestinos de primeira, segunda e terceira geração estão nas favelas. São pardos e pretos. Eles são descendentes dos desempregados ou desocupados que foram para metrópoles do Sudeste perseguindo a miragem do desenvolvimento. Eles são produto não do atraso, e sim do progresso, da proletarização, que, em pequena escala, de fato ocorreu. As favelas viraram (des)abrigo para o exército industrial de reserva em cidades onde a indústria está sendo dizimada. Eles não são excluídos. São o contrário: estão incluídos na atual configuração econômica. Nas favelas, ou neofavelas, os que estão em boa situação cabem no texto de Horkheimer dos anos 30.

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O livro mais conhecido de Horkheimer foi escrito junto com Theodor W. Adorno. Ele se chama, na tradução brasileira, “Dialética do esclarecimento”. Para a tradução de “Aufklärung” poderiam ser usadas também as palavras “iluminação” ou “das Luzes”. Elas remetem ao iluminismo francês, que revela a hipocrisia da injustiça social. Remetem também a Freud, ao desejo de trazer para o plano consciente o que é neurótico, obsessivo, pulsional. E, é claro, remetem a Marx, à perspectiva de desvendar os mecanismos de exploração e organização social. O objetivo do livro, enunciado no prefácio, é o seguinte: “Saber por que a humanidade mergulha num novo tipo de barbárie em vez de chegar a um estado autenticamente humano”.

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Se as favelas são o produto de uma história de progresso, e respondem às necessidades dos que dominam a sociedade, por que os que nelas vivem são “joguetes da estupidez e do sadismo”? Para formular uma resposta que fosse além dos dados materiais imediatos (ausência de emprego, de posse das moradias, de segurança etc.), seria preciso fazer uma pesquisa empírica, multidisciplinar.

O que se pode fazer, então, são aproximações. A televisão, que martela diuturnamente a obrigação de comprar mercadorias que não estão ao alcance do favelado e veicula a necessidade de aceitar as coisas tais como elas são. O sistema educacional, cuidadosamente montado para transformar o sopro emancipatório do saber numa chatice inútil. A ação das igrejas católica, cristãs e evangélicas, que pregam o conformismo e organizam a passividade. As ONGs, que assumem algumas funções do Estado à condição de pacificar a região.

A crueldade com o favelado tem razão de ser. Foi Nietzsche quem disse que “aquele que cai deve ser empurrado”. A vítima mais fraca é a que deve sofrer mais. Como os fracos não têm como escapar do sofrimento, que sofram mais. Devem ser reduzidos à inumanidade para que não incomodem os que têm meios de ser humanos.

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Na primeira metade do século passado, houve válvulas de escape para os moradores das favelas. O samba, o carnaval e o futebol. Não serviram nem de mecanismos de ascensão social. (Entrevistei Jamelão pouco antes do carnaval. Ele estava num hotel imundo e caindo aos pedaços no centro de São Paulo. Fazia shows no Bar Brahma “porque tenho muita gente que depende de mim”.) Mas se criou uma mística: “quem mora lá no morro vive pertinho do céu”. Hoje, nem isso. Quem lá nasce, nasce numa prisão, e deve cumprir sua pena perpetuamente.

Há o tráfico de drogas e o banditismo. Reza a lenda bem-pensante que traficantes e bandidos aprenderam a se organizar com presos políticos. Eles na verdade aprenderam seus truques com tiras, meganhas, polícias e políticos. Estudaram na escola do jogo do bicho, que tantos parlamentares e governadores elegeu no Rio de Janeiro. São os únicos fortes no pedaço. Os que podem enfrentar e zombam do Exército. Mimetizam a polícia e os políticos. A eles pode se aplicar o aforisma de Adorno sobre os fãs de jazz: “para transformar-se em inseto, o homem precisa da energia que poderia talvez transformá-lo em homem”.

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As favelas prefiguram um dos possíveis destinos do que sobrar da nação. Cesar Maia já defendeu que elas sejam cercadas. A sua ocupação pelo Exército foi aplaudida pela pequena burguesia. Turistas estrangeiros são levados a percorrê-las em jipes de safáris.


msconti@nominimo.ibest.com.br

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