Intelectuais são vistos, quase sempre, como sujeitos pedantes e amaneirados, que preferem as complicações inúteis do espírito às singelezas do mundo real. São tidos, sobretudo, como mal-humorados, homens cheios de negativismo e de azedume, e exageradamente críticos, sempre insatisfeitos com a vida e, em conseqüência, prontos para complicar e demolir. Algumas vezes, são tomados como chatos, outras como impostores. Quase nunca, como homens comuns.
Para enfrentar estes estigmas, o pensador norte-americano, radicado em Londres, Steve Fuller escreveu um pequeno petardo - ele também crítico, amargo e demolidor - que chega, agora, ao Brasil. “O intelectual/ O poder positivo do pensamento negativo” (Relume Dumará), o breve e estimulante livro de Fuller, deita por terra o estereótipo, disseminado por conselheiros, livros de auto-ajuda e religiões, segundo o qual devemos nos apegar, somente, às “idéias positivas” e fugir, sempre, de qualquer negativismo.
Para começar, Fuller escreve contra certo espírito “neutro” e “equilibrado”, dito científico, que, no seu entender, predomina hoje nas universidades. Nelas, protegidos por doutorados, papers e séqüitos de orientandos, os acadêmicos se fecham à brutalidade do mundo. “Gostaria de dar um conselho aos acadêmicos”, ele se atreve, “mesmo que tenham perdido o desejo de se tornarem intelectuais”. É uma advertência simples, mas dura: “Resistam à tentação de aniquilar o espírito libertário e irrequieto que caracteriza o florescimento do intelecto crítico”, diz. Na Inglaterra, onde vive há dez anos, Fuller aprendeu a conviver com acadêmicos que se consideram, acima de tudo, pragmáticos e “antiintelectuais” - “técnicos do saber”, em contraposição aos franceses, que seriam “intelectualistas” e diletantes. Mas essa imagem solene, do doutor frio e respeitável, não o comove, nem o engana.
Em desgraça por 2.500 anos
Em seu livro, Steve Fuller combate quatro estigmas que costumamos associar à imagem do intelectual. Os intelectuais nasceram de pé atrás, diz o primeiro estereótipo. Eles sofrem, quase sempre, de ligeira paranóia, diz o segundo. De acordo com o terceiro, os intelectuais carecem de um plano de negócios, pois são idealistas e confusos. Por fim, diz-se, os intelectuais fracassam porque - ao contrário dos acadêmicos, sempre restritos à objetividade de seu campo de pesquisa - procuram a “verdade total”, ou seja, aquilo que nunca será encontrado.
Em defesa dos intelectuais, que são por princípio prolixos e atuantes, Fuller se põe a escavar a história do pensamento ocidental. Nos primórdios da filosofia, uma grande má vontade cercava a figura dos sofistas - conhecidos por aparecer nos diálogos de Platão como os contestadores mais espertos de Sócrates. Platão cunhou a imagem dos sofistas como ilusionistas, arrogantes e sabichões, e não sábios - como a expressão “sofista” quer dizer em sua origem. Enquanto isso, Sócrates se tornou o ícone do racionalismo crítico ocidental. Ainda hoje, nas pegadas de Platão e Sócrates, o dicionário define um sofisma como um “argumento aparentemente válido, mas não conclusivo”.
Graças a Platão, Fuller nos lembra, os sofistas permaneceram em desgraça por 2.500 anos. Na verdade, ele diz, a figura do intelectual moderno surgiu de uma mescla entre as duas imagens. “Ambos, Protágoras (480-410 AC) - o mais célebres dos sofistas - e Sócrates, nos legaram dois estilos complementares que definem o intelectual”, observa. Meio explorador, como os sofistas ainda hoje são vistos, meio inquisidor, um mestre das perguntas desconcertantes como Sócrates, o intelectual de hoje tem uma imagem dúbia. A daquele que evita tanto o otimismo empresarial estimulado por Protágoras, quanto o pessimismo paranóico a que Sócrates era propenso.
A paranóia - eis outra marca registrada, inconfundível, dos intelectuais. “O paranóico se considera um instrumento inestimável da totalidade da realidade”, Fuller descreve. Como acreditam que a razão tem o poder de modificar o mundo, os intelectuais estão constantemente à procura de conspirações, ou de motivos ocultos sob a realidade das coisas. Respostas a perguntas não formuladas e o mal resultante de atos não-intencionais são dois aspectos que ilustram a imagem do intelectual à procura das sombras que escapam ao observador desatento. Elas podem ser, em muitos casos, de fato, produtos doentios de sua fértil imaginação. Mas, de outro lado, alerta Fuller, a luta do intelectual exige “eterna vigilância”, isto é, exige paranóia.
“Como Batman, que atravessa os céus noturnos de Gotham City à espera de um sinal do morcego requisitando seus serviços, para o intelectual as notícias são como apelos ocultos de um mundo desesperado à procura de orientação”, Steve Fuller compara. Para os intelectuais - assim como para os super-heróis - a vida social é o terreno por excelência da luta sangrenta do Bem contra o Mal. Identificar os dois lados, seja para agir como Bertrand Russel, que acreditava que o Bem sempre triunfa sobre o Mal, seja para agir como Jean-Paul Sartre, para quem a diferença entre o Bem e o Mal depende de qual deles merece a nossa afeição, é a tarefa do intelectual. E é o que alimenta seu gosto fatal pela paranóia.
Mas, e a verdade, onde fica? Quanto a ela, observa Steve Fuller, existem duas maneiras de pensá-la. A primeira busca “só a verdade”; a segunda, “toda a verdade”. A primeira indaga: “essa afirmativa corresponde à realidade?” A segunda quer saber: “a realidade é tudo o que se afirmou, ou algo importante ficou de fora?” Fuller argumenta que os tribunais erram ao desejar “toda a verdade e nada mais que a verdade”, pois, com isso, excluem incertezas e perplexidades, só por medo de que elas escondam falsidades. Mas também aqueles que buscam “toda a verdade” correm graves riscos, ele nos diz. No entender de Fuller, estes erram “ao incluir incertezas na esperança de que possam revelar verdades”. A busca da verdade - que é freqüentemente enfrentada, com duros conflitos íntimos, também pelos jornalistas - inclui necessariamente a tolerância ao erro, implica na convivência com a ignorância. Abrange, e não exclui, a imperfeição.
Eficácia acima da precisão
O ponto alto do livro de Fuller é um estimulante diálogo imaginário entre um intelectual - o livre pensador clássico - e um filósofo - o pensador sistemático da academia. O filósofo é o pensador cauteloso, que freqüenta as salas de aula e que mede as palavras; já o intelectual, sem vínculos que o prendam, atua em várias frentes, sem medir as palavras. Prudente, o filósofo acusa o intelectual de forçar seu ponto de vista sobre as coisas, de reduzir a complexidade do mundo a suas pequenas idéias. O intelectual ironiza os argumentos do filósofo, para quem algo só deve ser afirmado quando corresponde inteiramente à verdade. Orgulha-se, ao contrário, de falar “ao público comum”, isto é, de colocar a eficácia acima da precisão. “Ele espera cometer erros instrutivos que sirvam para ampliar a inteligência coletiva da sociedade”, Fuller o define.
O filósofo ironiza no intelectual sua submissão a prazos, a editores e à mídia. “Os intelectuais não são filósofos operando sob condições difíceis”, defende-se, porém, o intelectual. Mas, afora isso, Fuller acrescenta, também os filósofos se submetem a limites, ainda que limites “de sala de aula”, que envolvem currículos, programas de ensino e títulos. Eles estão tão expostos às interferências públicas quanto eles, intelectuais.
O intelectual de Fuller critica nos filósofos “continentais” (eruditos franceses e alemães, que se opõem ao sentido prático dos doutores ingleses) a ânsia de sempre repetir o que disseram seus mestres. “Desde que você tenha aprendido a pensar como, digamos, Michel Foucault, ou Jurgen Habermas, nunca mais vai precisar pensar por você mesmo”, ele ironiza. Sem arredar pé, o intelectual ressalva, contudo, que nada tem contra Foucault ou contra Habermas, mas “contra seus epígonos, clones e parasitas”. É o filósofo como um repetidor do mestre que ele, sem medir as palavras, ataca. Nele critica, ainda, a “prosa impenetrável”, que exclui os homens comuns.
Mas o filósofo também tem duros reparos a fazer ao intelectual. Nele critica, por exemplo, o “verniz habilidoso”, quer dizer, o brilho dos argumentos rápidos, que no fim seriam apenas uma “mistificação obscurantista”. “Considero um problema o modo como você politizou a história da ciência”, o filósofo desabafa, cansado dos argumentos transitórios do intelectual. Este, porém, não se abala: “Sim, é por isso que você é um filósofo e eu sou um intelectual”, distingue. Para um, as palavras são fim; para outro, meio.
Enquanto o filósofo prefere a “profundidade”, o intelectual opta pela “abrangência” - que é desprestigiada na academia, mas muito popular nos institutos de pesquisa. Para o intelectual, a vida acadêmica - com suas imersões “profundas” - é a grande responsável pelo surgimento de uma superstição em relação à vida intelectual. O intelectual prefere a abrangência à profundidade porque se recusa a acreditar que o saber possa se restringir a poucas pessoas, seja objeto apenas de nobres especialistas “cujas palavras não somente são reverenciadas pelos acadêmicos, como também lhes serve de modelos para discursos”. Não esconde sua aversão à rotina de escola e aos rituais de qualificação. “Não considero as universidades como fabricantes primordiais de padrões intelectuais e, muito menos, de gosto”.
Para o intelectual, as idéias só importam se estão disseminadas pelo mundo, se agem sobre ele. “A idéia de que todas as pessoas são importantes, e igualmente importantes, não é só um princípio político, mas também um princípio epistêmico”, ele argumenta. “Vocês, intelectuais, reduzem de tal forma a complexidade das questões que terminam por solapar seu claro objetivo de dizer a verdade ao poder”, rebate o filósofo. Mas, para o intelectual, os filósofos hesitam sempre que são chamados a fazer afirmações sobre o que é incerto. “Vocês preferem livrar-se das incertezas, ou emprestar sua voz a uma versão da realidade menos incerta”, ele protesta. Em outras palavras: seja como for, os filósofos fazem um retorno à metafísica, ele acusa. Entre o real e as idéias, ficam com as idéias.
Tidos como “birutas”
Na terceira parte de seu livro, Steve Fuller tenta responder a algumas questões difíceis que ajudam a definir o perfil do intelectual. “Qual é a atitude dos intelectuais em relação às idéias?”, ele se pergunta. Existem dois papéis opostos para o intelectual, responde: o de censor, que veta o cultivo de certas idéias, e o de advogado do diabo, que expõe as pessoas a idéias inesperadas. O primeiro prolifera nas paisagens autoritárias, o segundo, nos cenários democráticos. “Como um intelectual adquire credibilidade?”, pergunta ainda. Demonstrando independência de pensamento, Fuller responde. “Exibindo autonomia, quer dizer, quando é capaz de adotar posições que não parecem ser do seu interesse ostentar.”
Mas, ele se apressa a ressaltar, é fácil mostrar autonomia quando você vem de um ambiente abastado, ou aristocrático - como o Buda. É muito mais difícil, e dolorido, se você vem de um ambiente proletário, ou pobre. Também a autonomia de pensamento não está descolada do real. Nos dois casos, a grande dificuldade enfrentada hoje pelos intelectuais, Fuller avalia, se dá quando ele vê suas idéias rebeldes se tornarem consagradas, se tornarem senso comum. Aí, sim, é realmente difícil sustentá-las, é muito doloroso conservar uma posição.
Outra dificuldade para o intelectual, Fuller sustenta, é a convivência serena com estigmas dolorosos, como o de “biruta”. Intelectuais são tidos como “birutas” porque se movimentam por temas variados, não se apegam a posições fixas e pensam nas horas e situações mais inadequadas, em que ninguém mais se atreve a pensar. É mais cômodo ser o intelectual do tipo “câmara acústica”, ele argumenta, um daqueles sujeitos que se limita a traduzir o cotidiano para o perene. Mas a verdade é que este pensador pacato, que se limita a difundir e aprimorar o senso comum, não chega a tocar na realidade. E, portanto, sequer chega a ser um intelectual.
editor@nominimo.ibest.com.br
Para enfrentar estes estigmas, o pensador norte-americano, radicado em Londres, Steve Fuller escreveu um pequeno petardo - ele também crítico, amargo e demolidor - que chega, agora, ao Brasil. “O intelectual/ O poder positivo do pensamento negativo” (Relume Dumará), o breve e estimulante livro de Fuller, deita por terra o estereótipo, disseminado por conselheiros, livros de auto-ajuda e religiões, segundo o qual devemos nos apegar, somente, às “idéias positivas” e fugir, sempre, de qualquer negativismo.
Para começar, Fuller escreve contra certo espírito “neutro” e “equilibrado”, dito científico, que, no seu entender, predomina hoje nas universidades. Nelas, protegidos por doutorados, papers e séqüitos de orientandos, os acadêmicos se fecham à brutalidade do mundo. “Gostaria de dar um conselho aos acadêmicos”, ele se atreve, “mesmo que tenham perdido o desejo de se tornarem intelectuais”. É uma advertência simples, mas dura: “Resistam à tentação de aniquilar o espírito libertário e irrequieto que caracteriza o florescimento do intelecto crítico”, diz. Na Inglaterra, onde vive há dez anos, Fuller aprendeu a conviver com acadêmicos que se consideram, acima de tudo, pragmáticos e “antiintelectuais” - “técnicos do saber”, em contraposição aos franceses, que seriam “intelectualistas” e diletantes. Mas essa imagem solene, do doutor frio e respeitável, não o comove, nem o engana.
Em desgraça por 2.500 anos
Em seu livro, Steve Fuller combate quatro estigmas que costumamos associar à imagem do intelectual. Os intelectuais nasceram de pé atrás, diz o primeiro estereótipo. Eles sofrem, quase sempre, de ligeira paranóia, diz o segundo. De acordo com o terceiro, os intelectuais carecem de um plano de negócios, pois são idealistas e confusos. Por fim, diz-se, os intelectuais fracassam porque - ao contrário dos acadêmicos, sempre restritos à objetividade de seu campo de pesquisa - procuram a “verdade total”, ou seja, aquilo que nunca será encontrado.
Em defesa dos intelectuais, que são por princípio prolixos e atuantes, Fuller se põe a escavar a história do pensamento ocidental. Nos primórdios da filosofia, uma grande má vontade cercava a figura dos sofistas - conhecidos por aparecer nos diálogos de Platão como os contestadores mais espertos de Sócrates. Platão cunhou a imagem dos sofistas como ilusionistas, arrogantes e sabichões, e não sábios - como a expressão “sofista” quer dizer em sua origem. Enquanto isso, Sócrates se tornou o ícone do racionalismo crítico ocidental. Ainda hoje, nas pegadas de Platão e Sócrates, o dicionário define um sofisma como um “argumento aparentemente válido, mas não conclusivo”.
Graças a Platão, Fuller nos lembra, os sofistas permaneceram em desgraça por 2.500 anos. Na verdade, ele diz, a figura do intelectual moderno surgiu de uma mescla entre as duas imagens. “Ambos, Protágoras (480-410 AC) - o mais célebres dos sofistas - e Sócrates, nos legaram dois estilos complementares que definem o intelectual”, observa. Meio explorador, como os sofistas ainda hoje são vistos, meio inquisidor, um mestre das perguntas desconcertantes como Sócrates, o intelectual de hoje tem uma imagem dúbia. A daquele que evita tanto o otimismo empresarial estimulado por Protágoras, quanto o pessimismo paranóico a que Sócrates era propenso.
A paranóia - eis outra marca registrada, inconfundível, dos intelectuais. “O paranóico se considera um instrumento inestimável da totalidade da realidade”, Fuller descreve. Como acreditam que a razão tem o poder de modificar o mundo, os intelectuais estão constantemente à procura de conspirações, ou de motivos ocultos sob a realidade das coisas. Respostas a perguntas não formuladas e o mal resultante de atos não-intencionais são dois aspectos que ilustram a imagem do intelectual à procura das sombras que escapam ao observador desatento. Elas podem ser, em muitos casos, de fato, produtos doentios de sua fértil imaginação. Mas, de outro lado, alerta Fuller, a luta do intelectual exige “eterna vigilância”, isto é, exige paranóia.
“Como Batman, que atravessa os céus noturnos de Gotham City à espera de um sinal do morcego requisitando seus serviços, para o intelectual as notícias são como apelos ocultos de um mundo desesperado à procura de orientação”, Steve Fuller compara. Para os intelectuais - assim como para os super-heróis - a vida social é o terreno por excelência da luta sangrenta do Bem contra o Mal. Identificar os dois lados, seja para agir como Bertrand Russel, que acreditava que o Bem sempre triunfa sobre o Mal, seja para agir como Jean-Paul Sartre, para quem a diferença entre o Bem e o Mal depende de qual deles merece a nossa afeição, é a tarefa do intelectual. E é o que alimenta seu gosto fatal pela paranóia.
Mas, e a verdade, onde fica? Quanto a ela, observa Steve Fuller, existem duas maneiras de pensá-la. A primeira busca “só a verdade”; a segunda, “toda a verdade”. A primeira indaga: “essa afirmativa corresponde à realidade?” A segunda quer saber: “a realidade é tudo o que se afirmou, ou algo importante ficou de fora?” Fuller argumenta que os tribunais erram ao desejar “toda a verdade e nada mais que a verdade”, pois, com isso, excluem incertezas e perplexidades, só por medo de que elas escondam falsidades. Mas também aqueles que buscam “toda a verdade” correm graves riscos, ele nos diz. No entender de Fuller, estes erram “ao incluir incertezas na esperança de que possam revelar verdades”. A busca da verdade - que é freqüentemente enfrentada, com duros conflitos íntimos, também pelos jornalistas - inclui necessariamente a tolerância ao erro, implica na convivência com a ignorância. Abrange, e não exclui, a imperfeição.
Eficácia acima da precisão
O ponto alto do livro de Fuller é um estimulante diálogo imaginário entre um intelectual - o livre pensador clássico - e um filósofo - o pensador sistemático da academia. O filósofo é o pensador cauteloso, que freqüenta as salas de aula e que mede as palavras; já o intelectual, sem vínculos que o prendam, atua em várias frentes, sem medir as palavras. Prudente, o filósofo acusa o intelectual de forçar seu ponto de vista sobre as coisas, de reduzir a complexidade do mundo a suas pequenas idéias. O intelectual ironiza os argumentos do filósofo, para quem algo só deve ser afirmado quando corresponde inteiramente à verdade. Orgulha-se, ao contrário, de falar “ao público comum”, isto é, de colocar a eficácia acima da precisão. “Ele espera cometer erros instrutivos que sirvam para ampliar a inteligência coletiva da sociedade”, Fuller o define.
O filósofo ironiza no intelectual sua submissão a prazos, a editores e à mídia. “Os intelectuais não são filósofos operando sob condições difíceis”, defende-se, porém, o intelectual. Mas, afora isso, Fuller acrescenta, também os filósofos se submetem a limites, ainda que limites “de sala de aula”, que envolvem currículos, programas de ensino e títulos. Eles estão tão expostos às interferências públicas quanto eles, intelectuais.
O intelectual de Fuller critica nos filósofos “continentais” (eruditos franceses e alemães, que se opõem ao sentido prático dos doutores ingleses) a ânsia de sempre repetir o que disseram seus mestres. “Desde que você tenha aprendido a pensar como, digamos, Michel Foucault, ou Jurgen Habermas, nunca mais vai precisar pensar por você mesmo”, ele ironiza. Sem arredar pé, o intelectual ressalva, contudo, que nada tem contra Foucault ou contra Habermas, mas “contra seus epígonos, clones e parasitas”. É o filósofo como um repetidor do mestre que ele, sem medir as palavras, ataca. Nele critica, ainda, a “prosa impenetrável”, que exclui os homens comuns.
Mas o filósofo também tem duros reparos a fazer ao intelectual. Nele critica, por exemplo, o “verniz habilidoso”, quer dizer, o brilho dos argumentos rápidos, que no fim seriam apenas uma “mistificação obscurantista”. “Considero um problema o modo como você politizou a história da ciência”, o filósofo desabafa, cansado dos argumentos transitórios do intelectual. Este, porém, não se abala: “Sim, é por isso que você é um filósofo e eu sou um intelectual”, distingue. Para um, as palavras são fim; para outro, meio.
Enquanto o filósofo prefere a “profundidade”, o intelectual opta pela “abrangência” - que é desprestigiada na academia, mas muito popular nos institutos de pesquisa. Para o intelectual, a vida acadêmica - com suas imersões “profundas” - é a grande responsável pelo surgimento de uma superstição em relação à vida intelectual. O intelectual prefere a abrangência à profundidade porque se recusa a acreditar que o saber possa se restringir a poucas pessoas, seja objeto apenas de nobres especialistas “cujas palavras não somente são reverenciadas pelos acadêmicos, como também lhes serve de modelos para discursos”. Não esconde sua aversão à rotina de escola e aos rituais de qualificação. “Não considero as universidades como fabricantes primordiais de padrões intelectuais e, muito menos, de gosto”.
Para o intelectual, as idéias só importam se estão disseminadas pelo mundo, se agem sobre ele. “A idéia de que todas as pessoas são importantes, e igualmente importantes, não é só um princípio político, mas também um princípio epistêmico”, ele argumenta. “Vocês, intelectuais, reduzem de tal forma a complexidade das questões que terminam por solapar seu claro objetivo de dizer a verdade ao poder”, rebate o filósofo. Mas, para o intelectual, os filósofos hesitam sempre que são chamados a fazer afirmações sobre o que é incerto. “Vocês preferem livrar-se das incertezas, ou emprestar sua voz a uma versão da realidade menos incerta”, ele protesta. Em outras palavras: seja como for, os filósofos fazem um retorno à metafísica, ele acusa. Entre o real e as idéias, ficam com as idéias.
Tidos como “birutas”
Na terceira parte de seu livro, Steve Fuller tenta responder a algumas questões difíceis que ajudam a definir o perfil do intelectual. “Qual é a atitude dos intelectuais em relação às idéias?”, ele se pergunta. Existem dois papéis opostos para o intelectual, responde: o de censor, que veta o cultivo de certas idéias, e o de advogado do diabo, que expõe as pessoas a idéias inesperadas. O primeiro prolifera nas paisagens autoritárias, o segundo, nos cenários democráticos. “Como um intelectual adquire credibilidade?”, pergunta ainda. Demonstrando independência de pensamento, Fuller responde. “Exibindo autonomia, quer dizer, quando é capaz de adotar posições que não parecem ser do seu interesse ostentar.”
Mas, ele se apressa a ressaltar, é fácil mostrar autonomia quando você vem de um ambiente abastado, ou aristocrático - como o Buda. É muito mais difícil, e dolorido, se você vem de um ambiente proletário, ou pobre. Também a autonomia de pensamento não está descolada do real. Nos dois casos, a grande dificuldade enfrentada hoje pelos intelectuais, Fuller avalia, se dá quando ele vê suas idéias rebeldes se tornarem consagradas, se tornarem senso comum. Aí, sim, é realmente difícil sustentá-las, é muito doloroso conservar uma posição.
Outra dificuldade para o intelectual, Fuller sustenta, é a convivência serena com estigmas dolorosos, como o de “biruta”. Intelectuais são tidos como “birutas” porque se movimentam por temas variados, não se apegam a posições fixas e pensam nas horas e situações mais inadequadas, em que ninguém mais se atreve a pensar. É mais cômodo ser o intelectual do tipo “câmara acústica”, ele argumenta, um daqueles sujeitos que se limita a traduzir o cotidiano para o perene. Mas a verdade é que este pensador pacato, que se limita a difundir e aprimorar o senso comum, não chega a tocar na realidade. E, portanto, sequer chega a ser um intelectual.
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