domingo, 19 de março de 2006

À mesa, com Alexandre Dumas - Revista EntreLivros

Enviado por Thaís Zara
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A história da culinária e da etiqueta, por um cultor da gastronomia

POR OSCAR PILAGALLO


Alexandre Dumas não era exatamente um sujeito moderado. Gostava de escrever, e perpetrou ao longo da vida (1802-1870) não apenas uma ou duas centenas de livros, muitos no gênero romance-folhetim que ele criou. No total, foram mais de trezentos títulos, entre os quais Os três mosqueteiros e O conde de Monte Cristo.

Gostava também de comer e de se divertir, e o fazia sem se preocupar com limites. "Grandalhão, de verve inesgotável, sucessivamente milionário e falido, adepto dos haréns, capaz de rasgos impetuosos e teatrais." É assim que o escritor francês é descrito por André Telles na apresentação do pequeno volume Memórias gastronômicas, agora traduzido para o português pela Jorge Zahar Editor.

A ânsia de comer, de entreter, de trabalhar, enfim, a ânsia de viver com intensidade associou Dumas ao adjetivo pantagruélico. Pantagruel era o nome daquele personagem comilão de Rabelais, conterrâneo de Dumas, que viveu três séculos antes.

Alexandre Dumas, no entanto, faz distinção entre quantidade e qualidade. Ao classificar os tipos de apetite, menciona os oriundos da glutonaria e da gastronomia. O glutão insaciável está para o vício como o gastrônomo delicado está para a virtude.

Para sublinhar a carga negativa da glutonaria, Dumas recorre à história da Antigüidade. Lembra de Cronos, que devora os próprios filhos, temendo ser por eles destronado. Bem humorado, Dumas só o perdoa por ter fornecido a Pierre Vergniaud, guilhotinado durante a Revolução Francesa, esta comparação: "A Revolução é como Cronos: ela devora seus filhos".

Quanto à gastronomia, é chamada de "a gula dos espíritos delicados". Está relacionada "à necessidade sentida por certos anfitriões de reunir em casa alguns amigos, nunca em número menor que `as graças´ (as três filhas do Zeus da mitologia grega), nunca em número maior que `as musas´ (as nove deusas gregas da literatura e das artes)".

A Grécia Antiga foi onde e quando os grandes jantares tiveram início. "Foi nesses elegantes jantares que a conversação grega se formou, conversação copiada depois por todos os povos", relata Dumas. "Daí a expressão `sal ático´ para designar o estilo refinado dos atenienses."

O que saía da boca dos gregos, porém, era melhor do que o que entrava. Com seus vinhos doces e suas sobremesas que estufavam o jantar, Atenas nunca teve o que os romanos chamaram de grande cozinha. Como tudo na Roma helenizada, no entanto, também na culinária a Grécia foi um ponto de partida. Os primeiros cozinheiros em Roma eram gregos.

A cozinha romana só ganharia impulso tempos depois, com as conquistas. "Todos esses devastadores do mundo, que iam levar o nome e os grilhões de Roma a norte, sul, leste e oeste, carregavam consigo seus cozinheiros. Estes traziam para Roma, de todas as regiões, os pratos que julgavam dignos da cozinha romana."

Os modos à mesa são um capítulo à parte. Ao puxar um fio histórico da culinária, Dumas mostra como a etiqueta é caprichosa. A colher e o garfo, diz ele, foram pouco a pouco banidos da França até o século XVI, e seu uso só tornou corrente no século XVIII.

Como bom aperitivo que é, Memórias gastronômicas abre o apetite do leitor. O prato de resistência, o Grande dicionário de culinária de Dumas, será servido em breve, anuncia a editora.

Oscar Pilagallo é editor da revista EntreLivros
pilagallo@duettoeditorial.com.br

sexta-feira, 17 de março de 2006

Frankfurt na favela - Mario Sergio Conti - no mínimo, 14.03

Max Horkheimer escreveu: “Todos aqueles cavalheiros e damas distintos não só exploravam continuamente a miséria dos outros, mas ainda produziam-na, renovavam-na para poder viver a sua custa e aprontavam-se para defender esse estado de coisas ao preço do sangue alheio, tanto quanto preciso fosse”. Mais: “no momento exato em que essa mulher se veste para um jantar, os homens nas costas dos quais ele vive tomam seu lugar no turno da noite, no mesmo instante em que beijamos sua mão suave, porque ela se queixa de enxaqueca, nos hospitais de terceira classe as visitas são proibidas depois das seis horas, mesmo para os moribundos”.

Horkheimer classifica o “porão” do edifício social de “matadouro”. Diz que “a maioria dos homens, ao nascer, entra numa prisão”, que “sem dinheiro, sem estabilidade econômica, estamos à mercê de uma ninharia. Naturalmente, isso significa uma servidão terrível: um esgotante trabalho forçado, a escravidão dos pequenos encargos, as mesmas preocupações dia e noite, a dependência das pessoas mais desprezíveis. E não só nós, mas ainda os que amamos e por quem somos responsáveis, que passam conosco sob a roda do cotidiano. Nos tornamos joguetes da estupidez e do sadismo”.

Horkheimer conhecia os ricos de perto. Ele era filho de um milionário. Com a dotação de um outro filho de milionário, ele reformulou e deu alento ao Instituto de Estudos Sociais, que teve sede em Frankfurt, com a ascensão do nazismo se transferiu para Genebra, depois para Nova York, depois para a Califórnia, e no pós-guerra retornou a Frankfurt. Na sua concepção, o Instituto deveria ser multidisplinar, se dedicar a pesquisas empíricas e à teorização. No Instituto, ou ao redor dele, se desenvolveram conceitos e categorias como teoria crítica, indústria cultural, dialética da iluminação, unidimensionalidade, dessublimação repressiva, personalidade autoritária.

O texto de Horkhemeir é de 1934, ano de crise aguda na Alemanha. Ele descreve a ligação entre o trabalho e a riqueza. O trabalho, depreende-se, é do operário, mas também dos funcionários, dos empregados do comércio, de suas famílias, e de todos eles sob a ameaça do desemprego, da insegurança.

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Horkheimer gostava de citar um trecho de Maquiavel, da “História de Florença”: “Examinem as maneiras de agir dos homens. Verão que todos aqueles que chegam a ter uma grande riqueza e um grande poder conquistam-nos graças à violência ou à mentira. Mas aquilo de que se apoderam, por esperteza ou à força, eles o enfeitam para disfarçar o lado desprezível de sua vitória: dão-lhe títulos enganadores de sucesso e êxito. Aquele que, por estupidez ou falta de oportunidade, evita esses meios, condena-se à pobreza e à servidão por toda a vida. Os criados fiéis continuam sendo sempre criados, e as pessoas continuam sendo sempre pobres”.

Hokheimer levou Maquiavel adiante: “Diante daquele que detêm o poder, a maioria dos homens se transforma em criaturas dedicadas, amáveis. Diante da completa impotência, como a dos animais, tornam-se tratantes e carniceiros”.

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Contemplem-se as imagens da ocupação de dez favelas cariocas pelo Exército. Num primeiro nível, o que se vê são jovens e crianças descalças, de bermudões e camisetas, donas-de-casa pobres e soldados mal-ajambrados, com fardas que lhes caem mal, desengonçados. Não são ferozes e rígidos, prussianos, e sim uma mambembe tropa tropical. Uns e outros pertencem ao mesmo ambiente social.

Num segundo nível, o que se dá a ver é uma notável construção social. Fugindo do trabalho inviável nas grandes proriedades rurais, migrantes nordestinos de primeira, segunda e terceira geração estão nas favelas. São pardos e pretos. Eles são descendentes dos desempregados ou desocupados que foram para metrópoles do Sudeste perseguindo a miragem do desenvolvimento. Eles são produto não do atraso, e sim do progresso, da proletarização, que, em pequena escala, de fato ocorreu. As favelas viraram (des)abrigo para o exército industrial de reserva em cidades onde a indústria está sendo dizimada. Eles não são excluídos. São o contrário: estão incluídos na atual configuração econômica. Nas favelas, ou neofavelas, os que estão em boa situação cabem no texto de Horkheimer dos anos 30.

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O livro mais conhecido de Horkheimer foi escrito junto com Theodor W. Adorno. Ele se chama, na tradução brasileira, “Dialética do esclarecimento”. Para a tradução de “Aufklärung” poderiam ser usadas também as palavras “iluminação” ou “das Luzes”. Elas remetem ao iluminismo francês, que revela a hipocrisia da injustiça social. Remetem também a Freud, ao desejo de trazer para o plano consciente o que é neurótico, obsessivo, pulsional. E, é claro, remetem a Marx, à perspectiva de desvendar os mecanismos de exploração e organização social. O objetivo do livro, enunciado no prefácio, é o seguinte: “Saber por que a humanidade mergulha num novo tipo de barbárie em vez de chegar a um estado autenticamente humano”.

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Se as favelas são o produto de uma história de progresso, e respondem às necessidades dos que dominam a sociedade, por que os que nelas vivem são “joguetes da estupidez e do sadismo”? Para formular uma resposta que fosse além dos dados materiais imediatos (ausência de emprego, de posse das moradias, de segurança etc.), seria preciso fazer uma pesquisa empírica, multidisciplinar.

O que se pode fazer, então, são aproximações. A televisão, que martela diuturnamente a obrigação de comprar mercadorias que não estão ao alcance do favelado e veicula a necessidade de aceitar as coisas tais como elas são. O sistema educacional, cuidadosamente montado para transformar o sopro emancipatório do saber numa chatice inútil. A ação das igrejas católica, cristãs e evangélicas, que pregam o conformismo e organizam a passividade. As ONGs, que assumem algumas funções do Estado à condição de pacificar a região.

A crueldade com o favelado tem razão de ser. Foi Nietzsche quem disse que “aquele que cai deve ser empurrado”. A vítima mais fraca é a que deve sofrer mais. Como os fracos não têm como escapar do sofrimento, que sofram mais. Devem ser reduzidos à inumanidade para que não incomodem os que têm meios de ser humanos.

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Na primeira metade do século passado, houve válvulas de escape para os moradores das favelas. O samba, o carnaval e o futebol. Não serviram nem de mecanismos de ascensão social. (Entrevistei Jamelão pouco antes do carnaval. Ele estava num hotel imundo e caindo aos pedaços no centro de São Paulo. Fazia shows no Bar Brahma “porque tenho muita gente que depende de mim”.) Mas se criou uma mística: “quem mora lá no morro vive pertinho do céu”. Hoje, nem isso. Quem lá nasce, nasce numa prisão, e deve cumprir sua pena perpetuamente.

Há o tráfico de drogas e o banditismo. Reza a lenda bem-pensante que traficantes e bandidos aprenderam a se organizar com presos políticos. Eles na verdade aprenderam seus truques com tiras, meganhas, polícias e políticos. Estudaram na escola do jogo do bicho, que tantos parlamentares e governadores elegeu no Rio de Janeiro. São os únicos fortes no pedaço. Os que podem enfrentar e zombam do Exército. Mimetizam a polícia e os políticos. A eles pode se aplicar o aforisma de Adorno sobre os fãs de jazz: “para transformar-se em inseto, o homem precisa da energia que poderia talvez transformá-lo em homem”.

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As favelas prefiguram um dos possíveis destinos do que sobrar da nação. Cesar Maia já defendeu que elas sejam cercadas. A sua ocupação pelo Exército foi aplaudida pela pequena burguesia. Turistas estrangeiros são levados a percorrê-las em jipes de safáris.


msconti@nominimo.ibest.com.br

terça-feira, 7 de março de 2006

O Hino da Batalha da República - Wikipedia


O hino, apesar do apelo religioso, é uma marcha militar da época da Guerra Civil Americana.
Foi tocado nos funerais de Churchill e Reagan. Vale a pena ler a história extraída da Wikipedia.
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"The Battle Hymn of the Republic" is a patriotic anthem written by Julia Ward Howe for the United States during the American Civil War as a variation for the words to the marching song "John Brown's Body". It was first published on the front page of The Atlantic Monthly of February 1862; the sixth verse written by Howe, which is less commonly sung, was not published then. The song is often regarded as the northern counterpart to "Dixie."

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"The Battle Hymn of the Republic, Updated" (1901), was Mark Twain's mocking parody of the lyrics, from the "point of view" of an American industrialist, inspired by then-recent events of the Spanish and Philippine Wars.

The melody of the song is the basis for the popular union song "Solidarity Forever", written by Ralph Chaplin in 1915.

In 1960, the Mormon Tabernacle Choir won the Grammy Award for Best Performance by a Vocal Group or Chorus at the that year's awards ceremony with a recording that replaced the line "let us die to make men free" with the more cheery "let us live to make men free", a variation that has since caught on to some extent.
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Lyrics

Mine eyes have seen the glory of the coming of the Lord:
He is trampling out the vintage where the grapes of wrath are stored;
He hath loosed the fateful lightning of His terrible swift sword:
His truth is marching on.

(Chorus)

Glory, glory, hallelujah!
Glory, glory, hallelujah!
Glory, glory, hallelujah!
His truth is marching on

I have seen Him in the watch-fires of a hundred circling camps,
They have builded Him an altar in the evening dews and damps;
I can read His righteous sentence by the dim and flaring lamps:
His day is marching on.

(Chorus)

I have read a fiery gospel writ in burnished rows of steel:
"As ye deal with my condemners, so with you my grace shall deal;
Let the Hero, born of woman, crush the serpent with His heel,
Since God is marching on."

(Chorus)

He has sounded forth the trumpet that shall never call retreat;
He is sifting out the hearts of men before His judgment-seat:
Oh, be swift, my soul, to answer Him! be jubilant, my feet!
Our God is marching on.

(Chorus)

In the beauty of the lilies Christ was born across the sea,
With a glory in His bosom that transfigures you and me:
As He died to make men holy, let us die to make men free,[1]
While God is marching on.

(Chorus)

He is coming like the glory of the morning on the wave,[2]
He is wisdom to the mighty, He is succour to the brave,
So the world shall be His footstool, and the soul of Time His slave,
Our God is marching on.

(Chorus)

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Notes:

1. The clause "let us die to make men free" is the most explicit reference to the Union soldiers and the fight to end slavery. In later years, when this song was sung in a non-military environment, this line was sometimes changed to "let us live to make men free".
2. The sixth verse is often omitted. Also, a common variant changes "soul of Time" to "soul of wrong", and "succour" to "honor".

quarta-feira, 1 de março de 2006

Passeio no Tietê: o engenheiro e a capivara - Mario Sergio Conti - no mínimo - 22.01

Visto de baixo, o Cebolão é um dédalo ensurdecedor de viadutos. Todos os barulhos de todos os carros, de todos os ônibus, de todos os trens, de todas as motos, de todos os tratores e de todos os caminhões de São Paulo convergem para o entroncamento dos rios Tietê e Pinheiros. Pneus, amortecedores, molas, carrocerias e engrenagens se chocam contra o asfalto remendado, os buracos, as crateras. Motores, sirenes, brecadas e buzinas incessantes completam a algaravia sonora.

A água do rio Tietê é preta. A água é mais preta que café. A água é imóvel. A água é densa. É mais plástica que líquida. É piche. É magma. A água é coágulo. Ela suportará o paralelepípedo que se lhe for colocado em cima: leve e livre, a pedra flutuará. Na “Meditação sobre o Tietê”, Mario de Andrade descreveu a água do rio como um pesadelo: “pesada e oleosa”. Aqui e ali, jazem garrafas de plástico, perfeitamente paradas, secas e cobertas de poeira cinza. As margens do rio estão revestidas de concreto igualmente cinza. Para além das margens, o que se dá a ver é fumaça dos automóveis e caminhões. Tudo é negro e cinza, exceto as nesgas de céu azul-pálido que se entrevê entre os viadutos.

O que se ouve e o que se vê de dentro de uma lancha que navega no rio Tietê, bem embaixo do Cebolão, pode ser descrito apenas em parte, em cacos. O que se cheira é indescritível. Não é esgoto. Não é petróleo. Não é enxofre. Não é cloaca. Não é sulfa nem necrotério. É tudo isso misturado e piorado. É uma fedentina acre, escaldante como a tarde estúpida de janeiro, um odor pestilento que impregna roupas, cabelo, pelos, pele, entra pelos poros, circula pelo sangue e o apodrece, contamina a alma e a necrosa.

A paisagem auditiva, visual e olfativa lembra Mario de Andrade outra vez, na mesma “Meditação”: “tristeza que timbra um caminho de morte”.

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Dias antes, jantando com José Serra, o prefeito contou que às vezes é obrigado a andar de helicóptero (coisa que ele detesta), para escapar dos engarrafamentos e chegar a tempo a um compromisso. Lembro do que ele disse: “vista de cima, São Paulo dá vontade de chorar, de chorar aos gritos”. Serra se referia à pobreza das periferias, ao emaranhado de ruelas sem calçamento, à ausência de parques e praças, ao produto histórico de décadas de destruição da natureza.

Vista de baixo, de dentro do Tietê, São Paulo não é nem natureza nem obra humana. É outra coisa. É o érebo, o orco, o averno. É o Flegetonte, que Dante descreve no Canto XII do “Inferno”: o rio de sangue onde ficam os pecadores que atentaram contra os bens e as vidas de seus contemporâneos. Os assaltantes ficam com sangue até a cintura. Os assassinos ficam só com a cabeça de fora. E os tiranos, por terem roubado e matado, ficam imersos até as sobrancelhas. Com a diferença que no petrificado sangue pútrido do Tietê não há nem ladrões nem assassinos nem nenhum dos governantes que em apenas meio século o transformaram em paisagem estéril.

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E, no entanto, o engenheiro Ricardo Borsari, aponta para a margem do rio e exclama, entusiasmado: “Veja que beleza!” Em vez de chorar aos gritos, concordo com ele: apesar de horrenda, a margem revestida de cimento é realmente uma beleza. Borsari, um cinquentão de bigodes grisalhos aparados fio a fio, me aguardava de terno e gravata impecáveis à beira do Tietê, na altura da fronteira de São Paulo com Osasco. Parecia que tinha saído do banho. Eu estava em petição de miséria: o táxi em que cheguei não tinha ar-condicionado, o motorista se perdeu duas vezes, fomos parar para lá da casa do chapéu, e cheguei só com dez minutos de atraso porque saí de casa uma hora antes.

Borsari se referia à beleza utilitária da obra que ele coordenou durante quase quatro anos, a da ampliação da calha do Tietê, na condição de superintendente do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo. “Antes, a cada chuva mais forte, havia 50% de possibilidade do Tietê transbordar e invadir a marginal, e, agora, o índice cai para 1%”.

Com a objetividade dos engenheiros, Borsari conta que foram retirados, de pouco mais de 24 quilômetros do rio, nove milhões de metros cúbicos de rocha, areia e terra, além de 120 mil pneus. Isso mesmo, 120 mil pneus. Dois mil homens trabalharam cotidianamente na obra, mas houve dias em que chegaram a mais de três mil. “Como toda vida humana é preciosa, lamento que dois operários tenham morrido”, diz Borsari, “mas, em qualquer lugar do mundo, é um índice baixo de acidentes fatais para um trabalho dessa envergadura”. Foram usados cem mil metros cúbicos de concreto. O leito do rio foi alargado para um mínimo de 46 metros, e foi cavado para ter ao menos quatro metros de profundidade – o que é pouco: em Paris, o Sena tem trinta metros de profundidade. Plantaram-se quase dez mil árvores nas margens. Tudo saiu por um bilhão de reais

Pergunto se as árvores foram plantadas para esconder o rio. “Não, é justamente o contrário, elas servem para chamar a atenção para o rio”, responde Borsari. O superintendente diz que houve também o cuidado de colocar os nomes dos 59 córregos que desaguam no Tietê. “A população vai lentamente aprender a conhecer o rio, a reconhecer o seu traçado e afluentes”, espera o engenheiro que tem orgulho de ter nascido no Estado, na cidade e na maternidade de São Paulo.

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A obra colossal não resolverá o problema da poluição do Tietê. Quase 40% do esgoto da Grande São Paulo continuarão a ser despejados no rio sem tratamento. É o esgoto de mais de sete milhões de pessoas que vai diretamente das privadas para a artéria central da cidade. Ou seja, o Tietê não é um rio. É um canal de esgoto a céu aberto.

As enchentes continuarão, ainda que diminuídas. Para que elas se mantenham na propoção imaginada por Borsari, o rio terá de ser escavado diuturnamente. Só de lixo, são doze toneladas que chegam ao seu leito todos os dias. A cada ano, cerca de 800 mil metros cúbicos de terra e areia dos córregos e alfuentes são levadas para o Tietê. E há o problema de quatro pontes, as mais antigas, que são baixas. Para que caminhões cada vez mais altos pudessem passar, as marginais tiveram de ser escavadas, ficando quase abaixo do leito do rio. Nelas, só com bombas de sucção é possível evitar as enchentes. Na penúltima cheia, duas bombas pifaram e as marginais inundaram.

Há, ainda, um problema estrutural. Os 45 quilômetros das marginais foram construídos bem ao lado das margens, em várzeas que inundavam fatalmente no verão. As avenidas aprisionaram o rio no seu leito mais estreito, e não no mais largo. Para completar, há a questão que leva Serra a ter o impulso de chorar aos gritos quando contempla a cidade de cima: a ausência de terra, grama, vegetação. O nome técnico disso é impermeabilização do solo. A água da chuva não tem para onde escoar. Em diz de chuva forte, ela permanece na superfície, empoçada. Ou seja, ainda que canal de esgoto, o Tietê segue sendo um rio, com seus fluxos e ciclos.

As marginais e a impermeabilização do solo são produto, em boa medida, das ações de Faria Lima que, apesar disso, é ainda considerado um dos grandes prefeitos paulistanos. Sua prioridade (como também a de Olavo Setúbal, Jânio Quadros e Paulo Maluf) foram as obras viárias, a livre circulação de automóveis, em detrimento da preservação do solo e do incentivo ao transporte coletivo. “A gente faz o que é possível, a gente se adapta à feição que a cidade tomou, é impossível voltar atrás”, resigna-se Borsari.

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Na altura da Ponte dos Remédios, vejo algo se mexendo na margem. É um animal. Uma capivara de bom porte. Mais adiante, aparece uma garça. Elas destoam da paisagem. São tão irreais quanto unicórnios ou centauros. Como a flor que rompeu o asfalto no poema de Drummond, elas significam a irrupção do natural na obra humana. Tento contagiar Borsari com meu entusiasmo. Ele conta que foram capturados dezenas de animais silvestres, prontamente encaminhados a criadouros. “De agora em diante, haverá cada vez menos capivaras e garças no rio: como as margens foram cimentadas, elas não terão o que comer”, lamenta o engenheiro, afogando meu entusiasmo no Tietê.

Universidade em tempos de plágio - Bruno Garschagen - no mínimo - 29.01

Plagiar nunca foi tão fácil e freqüente nas universidades brasileiras, principalmente depois da popularização da internet. Os professores universitários são obrigados a duvidar de todos os trabalhos entregues pelos alunos. “O plágio nas universidades se tornou uma pandemia”, lamenta Lécio Augusto Ramos, professor de metodologia da pesquisa do curso de Comunicação Social da Universidade Estácio de Sá e orientador de trabalho de conclusão de curso da cadeira de Cinema e Vídeo da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Segundo ele, há um grande processo intenso de apropriação indevida de frases, parágrafos e até trabalhos inteiros nos cursos de graduação e pós. Embora exista uma legislação especifica sobre direitos autorais e o Código Penal estabeleça punições, a cópia se torna cada dia mais comum entre os estudantes. “O plágio intelectual é indefensável e está presente em todos os níveis, do jornalismo à academia”, ressalta Lécio.
Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) a cópia também tem sido detectada de forma freqüente. Ana de Alencar, professora de Teoria Literária da Faculdade de Letras da UFRJ, conta que o tema se tornou recorrente nas conversas entre os professores, que aplicam nota zero quando identificam o furto teórico. Ana, no entanto, não dramatiza a questão. Acha que o desenvolvimento tecnológico provocou uma revisão do debate sobre direitos autorais. Mesmo assim, considera o plágio inaceitável.

Ruim como certos chopes

Rosa Benevento, coordenadora do departamento de Comunicação Social da UFF, que engloba os cursos de jornalismo, publicidade e cinema, revela que, tão grave quanto o plágio, foi descobrir que a cópia, em muitos casos, não ocorre exatamente por má-fé, mas porque o aluno aprendeu a plagiar no ensino médio: “Isso me alertou para o tipo de ensino de pesquisa e elaboração de trabalho que esses alunos estão aprendendo antes de chegar à faculdade. Isso é muito preocupante”, avalia.

Rosa conta que a identificação cada vez mais regular de trabalhos com plágios obrigou a faculdade a realizar palestras de orientação sobre o assunto. “A idéia é mostrar para eles que o mais importante é criar e não copiar”. Para os alunos, copiar é preciso. Exercitar o intelecto, nem tanto.

Seja por desconhecimento ou má-fé, o fato é que nunca se viram na história do ensino brasileiro tantos plágios identificados, segundo os professores entrevistados. A maioria dos alunos ignora ou finge não saber que a cópia sem citação da fonte tem conseqüências jurídicas nas esferas civil e penal.

O advogado Rodrigo Borges Carneiro, especialista em direitos autorais e propriedade intelectual, diz que o plágio configura o crime de violação dos direitos do autor, tipificado no artigo 184 do Código Penal. O plagiário pode ser condenado a pena de detenção de três meses a um ano, ou multa. Caso a violação consista “em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, (...) sem autorização expressa do autor, (...) ou de quem os represente”, a pena será de “dois a quatro anos de reclusão, e multa”.

A lei de direitos autorais (9.610/1998), que regula a matéria, estabelece que “ninguém pode reproduzir obra que não pertença ao domínio público, a pretexto de anotá-la, comentá-la ou melhorá-la, sem permissão do autor” (artigo 33). O artigo 7 da lei define as obras intelectuais protegidas pela lei (os textos de obras literárias, artísticas ou científicas, obras dramáticas, composições musicais etc.) e o artigo 22 diz que os direitos morais e patrimoniais sobre a obra criada pertencem ao autor. É óbvio, mas é a lei, que, não raro, é óbvia.

Direito autoral, na definição de Henrique Gandelman no livro “O que você precisa saber sobre direitos autorais”, “é a proteção jurídica das formas de expressão originais e criativas, tanto de idéias como de conhecimento e sentimentos humanos”. Mais claro do que isso, só chope de má qualidade servido em certos barzinhos da predileção dos universitários.

O uísque como padrão

No Brasil, os direitos do autor foram reconhecidos legalmente pela primeira vez em 1891, com a primeira constituição republicana. A matéria passou a ser regida pelo Código Civil a partir de 1917, mas em 1973 entrou em vigor uma lei específica (lei 5.988). Atualmente, como já dito, os direitos autorais são regulados pela lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Além das normas internas, o país aderiu a cinco tratados internacionais que protegem a propriedade intelectual: Convenção de Berna; Convenção Universal; Convenção de Genebra; e Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (TRIPs).

O conceito de copyright, porém, é bem mais velho. Surgiu na Inglaterra mais de um século antes da inserção da matéria na constituição brasileira. Foi durante o reinado da rainha Ana, mais precisamente em 1709, que se elaborou o Copyright Act, segundo Gandelman em seu livro sobre direitos autorais.

A coroa passou a proteger por 21 anos, idade de um uísque de ótima qualidade, as cópias impressas de determinadas obras registradas formalmente. As obras não impressas eram protegidas durante 14 anos, pouco mais do que o padrão de um scotch mais do que razoável. Até então, sob a vigência do Licensing Act, de 1662, só os editores comiam o pirão. Os autores chupavam dedo.

Na França, os autores conseguiram fazer valer seus direitos no final do século XVIII. A Revolução Francesa em 1789, que, além das decapitações, teve na defesa dos direitos individuais uma de suas marcas mais significativas, foi o estopim para que o conceito do copyright inglês fosse incorporado à legislação do país de Rabelais.

De lá para cá, a legislação foi se aperfeiçoando no mundo ocidental. E, em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU), na assembléia geral realizada em 10 de dezembro, inseriu na Declaração Universal dos Direitos Humanos que todo homem tem “direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção literária, artística ou científica de qual seja o autor” (artigo 27, parágrafo 2).

Aranhas em teia alheia

Desde a popularização da internet, o uso muitas vezes indiscriminado do conteúdo disponível na rede gera debates intermináveis sobre a propriedade intelectual e sua proteção legal. Estabeleceu-se a confusão (para alguns, uma certeza inabalável) de que os textos disponíveis para leitura e consulta pudem ser reproduzidos ad nauseam sem ao menos um pedido de permissão por e-mail - que dirá remuneração. Quem escreve sabe que, na world wide web, as aranhas se incumbem de espalhar a teia alheia.

E se os internautas estão se criando e sendo criados sob a mentalidade do desrespeito com a proteína mental alheia, alguns intelectuais referendam a velhacaria e estimulam o crime.

Pierre Lévy, popstar do pensamento sobre o mundo digital, teve a desfaçatez de escrever no seu livro “O que é virtual” que a “distinção do original e da cópia há muito perdeu qualquer pertinência” na internet. Ele acha que “não há mais um texto, discernível e individualizável, mas apenas texto, assim como não há uma água e uma areia, mas água e areia”.

Se o pecado fosse apenas a obviedade, tudo estaria resolvido. Mas o problema é de outra ordem. E muito mais grave. Lévy quer vender a idéia abjeta de que no espaço virtual não cabe falar em originalidade e autoria. O texto, como obra individual, se perderia num imenso sopão de letrinhas. Assim, não haveria razões para se estabelecer critérios de qualidade. Qualquer viúva de Bukowski seria colocada na altura de Philip Roth, para ficarmos em autores contemporâneos.

Lécio Ramos, professor da Universidade Estácio de Sá, atribui a quatro fatores o crescimento do plágio intelectual:

1- A deformação na formação educacional e intelectual de alunos, professores e demais profissionais da área;

2- A diluição ética do que é e do que não é lícito fazer;

3- A facilidade trazida pela internet, que coloca à disposição, em escala geométrica, muitos textos para quem quiser copiar;

4- A falta de tempo e pressão para produzir trabalhos.

Amigo e alcagüete

D.G, aluno de direito na UniverCidade no Rio de Janeiro, diz que 90% dos trabalhos que entregou na faculdade são plagiados de textos disponíveis na internet. O acadêmico revela que copia pela praticidade, agilidade e certeza de que assim terá um trabalho de melhor qualidade do que se fizesse por conta própria.

E sobre o aspecto ético e legal, tão caros ao direito? “Na verdade, nunca parei para pensar nisso. Quase todos os meus colegas na faculdade também copiam da internet ou copiam trabalhos que foram feitos assim”, diz D.G. “Mas sei que o maior prejudicado serei eu mesmo.”

O plágio se tornou um problema tão sério que os professores universitários ouvidos por NoMínimo defendem a adoção imediata de um trabalho pedagógico de conscientização e o ensino mais eficaz de como pesquisar e usar as fontes de informação. Ana Alencar, da UFRJ, acha fundamental seduzir o aluno despertando-lhe o interesse pelo desenvolvimento intelectual. E ela não propôs chopada nem churrasco, mas aulas dinâmicas.

Rosa Benevento, da UFF, diz que os professores podem coibir o plágio acompanhando o desenvolvimento do aluno. “Conhecendo o aluno, é possível perceber imediatamente se o trabalho que ele produziu está de acordo com sua formação e rendimento.”

Lécio Ramos, da Estácio de Sá, acha que esse é um dos caminhos, mas lembra aos professores que consultar um programa de metabusca também é importante para verificar a origem da cópia. Na maioria das vezes, o Google denuncia imediatamente a fonte do furto intelectual. O programa criado por Sergey Brin e Larry Page é, ao mesmo tempo, grande amigo dos plagiários e o mais eficiente alcagüete dos jovens criminosos.

Por tão suspeito quanto o mordomo

Há três tipos muito comuns de plágio, segundo o professor da Estácio de Sá:

- plágio integral - a transcrição sem citação da fonte de um texto completo;

- plágio parcial - cópia de algumas frases ou parágrafos de diversas fontes diferentes, para dificultar a identificação;

- plágio conceitual - apropriação de um ou vários conceitos, ou de uma teoria, que o aluno apresenta como se fosse seu.

Muitos alunos, para engabelar os professores, deixam para entregar os trabalhos no fim do prazo na esperança de que o acúmulo de textos para corrigir impeça a descoberta do plágio.

Uma dica para não copiar por erro ou ignorância (excluindo a má-fé) é seguir as recomendações de Umberto Eco no livro “Como se faz uma tese em ciências humanas”. O professor italiano cita exemplos bastante claros de uma “paráfrase honesta”, “uma falsa paráfrase” e uma “paráfrase textual que evite o plágio”. Ali está o caminho das pedras.

O plágio ampliou as responsabilidades do professor, que, pela regularidade com que encontra trechos copiados, opta por aplicar uma nota zero ou solicitar ao aluno que refaça corretamente o trabalho. Alguns são diretamente encaminhados ao departamento responsável para as devidas punições, que começam com uma advertência e podem culminar na expulsão da universidade.

E se engana quem acha que só os alunos se valem do plágio. “Tivemos casos aqui até de professores plagiando trabalhos de outros professores”, revela Rosa Benevento, da UFF. Um dos casos mais notórios, que não envolve internet, foi apontado pelo diplomata José Guilherme Merquior, intelectual de primeira e uma espécie de pitbull das polêmicas. Num texto para a “Folha de S. Paulo” em julho de 1989, Merquior revelou a “desatenção” da professora de filosofia Marilena Chauí ao inserir vários parágrafos do pensador francês Claude Lefort, sem citar a fonte, no seu livro “Cultura e democracia”.

O filósofo Roberto Romano, num texto para o “Correio Popular” de setembro de 2005, lembra que “movido pela piedade e diante dos lamentos dramáticos por ela encenados”, tentou defendê-la. E levou “merecidas pauladas de Merquior”. Romano revela que um figurão “importantíssimo no Panteão da esquerda”, único a não se sentir indignado com Merquior, “disse clara e distintamente:Ela colou”. Lefort, professor e amigo de Marilena, tentou publicamente salvar a aluna da acusação, mas Merquior não havia deixado abertura para refutações.

Nenhuma instituição está salva do plágio e os alunos passaram a ser tão suspeitos quanto o mordomo dos romances policiais. E, se a cara de pau dos plagiários não tem nada de virtual, a velha assassinada não é mais uma vovozinha rica, mas o presente e o futuro intelectual de uma nação.

Night and Day (Cole Porter) - Letra

Interpretação de Frank Sinatra
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Like the beat beat beat of the tom-tom
When the jungle shadows fall
Like the tick tick tock of the stately clock
As it stands against the wall
Like the drip drip drip of the raindrops
When the summer shower is through
So a voice within me keeps repeating you, you, you

Night and day, you are the one
Only you beneath the moon or under the sun
Whether near to me, or far
It’s no matter darling where you are
I think of you

Day and night, night and day, why is it so
That this longing for you follows wherever I go
In the roaring traffic’s boom
In the silence of my lonely room
I think of you

Day and night, night and day
Under the hide of me
There’s an oh such a hungry yearning burning inside of me
And this torment won’t be through
Until you let me spend my life making love to you

Day and night, night and day

Ópera paulistana: Figaro - Mario Sergio Conti - no mínimo - 26.02

Nos fins de semana, São Paulo é uma ótima cidade para ficar em casa. Desde que se tenha uma casa. Fora, tudo está mais ou menos cheio. Os cinemas, os poucos parques, os restaurantes, as livrarias. Às vezes, vem a vontade insensata de sair de casa. Para passear. Ver alguma coisa. Comer.

O jornal anuncia que “O casamento de Figaro” abrirá a temporada lírica no Teatro Municipal. É um programa para uma tarde de domingo. Um bom programa. A música é de Mozart. O libreto, intrincado e divertido, de Lorenzo da Ponte. Pensando bem, são dois programas. O primeiro será comprar os ingressos e dar uma volta pelas redondezas. O segundo, a ópera propriamente dita.

Fomos então, Lina e eu, numa manhã de sábado, ao Municipal. Chovia. Chovia muito. Estava abafado. Ir de carro, nem pensar. Além do trânsito, não saberia onde estacionar. Não há metrô. Não há linha de ônibus de casa até lá. Vamos de táxi. Onze horas da manhã, estamos na porta do teatro. A bilheteria só abre às três da tarde. Estranho, por que só às três da tarde?

Visitamos o teatro, que é acanhado. Debaixo de chuva, vamos à Livraria Francesa, na rua Barão de Itapetininga. Fazemos hora, compramos dois livros, esperamos a chuva passar. Ela não passa. Atravessamos a praça da República, que está em obras, rumo ao largo do Arouche. Camelôs, sujeira, multidões, gente desdentada e malvestida, chuva. O restaurante que lembrava ser bom está fechado. Um outro, razoável, na esquina com a avenida São João, fechou de vez. Entramos num rodízio de carnes de péssima aparência. A comida faz jus à aparência. Em compensação, a conta saiu em quinze reais, com sobremesa e suco, e minha filha achou bom o restaurante.

São duas da tarde. Não há onde fazer hora. Ainda mais debaixo de chuva. Tomamos um táxi e voltamos para casa.

***

Em casa, constato que é possível comprar os ingressos pelo telefone. O número está ocupado. Ligo umas dezessete vezes. Sempre ocupado. Deu linha. Uma gravação pede que digite o número do cartão de crédito. Estou com o bicho na mão. A gravação pede o número do CPF. Não faço idéia onde esteja. Até achá-lo, a ligação caiu. Tenho sorte: são só seis ligações para obter linha. Digito tudo de novo. Pedem que aguarde. Aguardo. Vem uma voz feminina, mais mecânica que a gravação. Para a matinê do domingo da semana seguinte, só há lugares na galeria. Pergunto qual é o andar. É o terceiro, responde a moça. Dá para ver o palco. Dá, diz ela. É preciso repetir mais uma vez o número do cartão de crédito e o do CPF. Com as taxas, pago 78 reais por três ingressos. A compra telefônica levou três horas.

***

No domingo do espetáculo, Lina toma banho, se perfuma com lavanda, bota seu vestido cor-de-rosa preferido, os sapatinhos brancos e a tiara de bijuteria rosa que lhe comprei em Roma. Vamos de carro ou de táxi? Vamos de carro. É domingo, haverá lugar para estacionar, imagino.

Ao descer a rua Xavier de Toledo, sou saudado por uma chusma de andrajosos, que me orientam a ir com o carro para o viaduto do Chá. “Por aqui, doutor!”, me orientam. Orientado, paro o carro. “São quinze reais, doutor”. Quinze! “Vou pagar depois”, aviso. O sujeito explica que na saída, não tem como recolher o dinheiro de todos. Pago-lhe dez reais.

No teatro, ao pegar o ingresso, o funcionário avisa que devo pegar o elevador até o quinto andar. Mas não é no terceiro? Não, não é. No quinto andar, não há quem oriente. Bagunça. As pessoas das cadeiras pares trombam com as das ímpares. Estamos na quarta fila do quinto andar. Temos direito a ver um terço do palco, o que fica no canto da direita.

Em meio a um grande burburinho nas galerias, começa a ópera. Debruçamo-nos sobre o balcão. Não adianta. Lina vem para o meu colo. Não enxerga. Fica de pé. Enxerga um pouquinho.

Uma crítica do espetáculo elogiava os cenários, dizendo que eles eram econômicos. O cenário do primeiro ato é uma lona (mal) pintada. Ele não é econômico. É miserável. É a estética da fome sem política glauberiana. O som da orquestra é mirrado. As vozes dos cantores, à exceção de Cherubino, me pareceram pífias, não sei se devido à acústica, à localização ou aos cantores mesmo. Acaba o primeiro dos quatro atos. A única alternativa possível era sair. Saímos.

No carro, havia uma multa no pára-brisa. Os guardadores de carro desapareceram.

***

Uma sugestão para os atuais manda-chuvas da Prefeitura paulistana. Vendam o Teatro Municipal. Façam uma dessas privatizações bem marotas. Não há cabimento em mantê-lo. Por que fingir que ele é útil, pertinente? O Muncipal pode ser transformado num excelente camelódromo. Ou numa dessas cadeias de lojas populares, especializadas em arrancar o bagaço de quem não tem nada.

***

No final de março, o Teatro Municipal apresentará “A flauta mágica”, também de Mozart. Lina adora a ópera. Um amigo interpretará o papel de Papageno. Não irei vê-la. Ficarei em casa. Como um paulistano típico.


msconti@nominimo.ibest.com.br

O intelectual o que é? - José Castello - no mínimo - 27.02

Intelectuais são vistos, quase sempre, como sujeitos pedantes e amaneirados, que preferem as complicações inúteis do espírito às singelezas do mundo real. São tidos, sobretudo, como mal-humorados, homens cheios de negativismo e de azedume, e exageradamente críticos, sempre insatisfeitos com a vida e, em conseqüência, prontos para complicar e demolir. Algumas vezes, são tomados como chatos, outras como impostores. Quase nunca, como homens comuns.

Para enfrentar estes estigmas, o pensador norte-americano, radicado em Londres, Steve Fuller escreveu um pequeno petardo - ele também crítico, amargo e demolidor - que chega, agora, ao Brasil. “O intelectual/ O poder positivo do pensamento negativo” (Relume Dumará), o breve e estimulante livro de Fuller, deita por terra o estereótipo, disseminado por conselheiros, livros de auto-ajuda e religiões, segundo o qual devemos nos apegar, somente, às “idéias positivas” e fugir, sempre, de qualquer negativismo.

Para começar, Fuller escreve contra certo espírito “neutro” e “equilibrado”, dito científico, que, no seu entender, predomina hoje nas universidades. Nelas, protegidos por doutorados, papers e séqüitos de orientandos, os acadêmicos se fecham à brutalidade do mundo. “Gostaria de dar um conselho aos acadêmicos”, ele se atreve, “mesmo que tenham perdido o desejo de se tornarem intelectuais”. É uma advertência simples, mas dura: “Resistam à tentação de aniquilar o espírito libertário e irrequieto que caracteriza o florescimento do intelecto crítico”, diz. Na Inglaterra, onde vive há dez anos, Fuller aprendeu a conviver com acadêmicos que se consideram, acima de tudo, pragmáticos e “antiintelectuais” - “técnicos do saber”, em contraposição aos franceses, que seriam “intelectualistas” e diletantes. Mas essa imagem solene, do doutor frio e respeitável, não o comove, nem o engana.

Em desgraça por 2.500 anos

Em seu livro, Steve Fuller combate quatro estigmas que costumamos associar à imagem do intelectual. Os intelectuais nasceram de pé atrás, diz o primeiro estereótipo. Eles sofrem, quase sempre, de ligeira paranóia, diz o segundo. De acordo com o terceiro, os intelectuais carecem de um plano de negócios, pois são idealistas e confusos. Por fim, diz-se, os intelectuais fracassam porque - ao contrário dos acadêmicos, sempre restritos à objetividade de seu campo de pesquisa - procuram a “verdade total”, ou seja, aquilo que nunca será encontrado.

Em defesa dos intelectuais, que são por princípio prolixos e atuantes, Fuller se põe a escavar a história do pensamento ocidental. Nos primórdios da filosofia, uma grande má vontade cercava a figura dos sofistas - conhecidos por aparecer nos diálogos de Platão como os contestadores mais espertos de Sócrates. Platão cunhou a imagem dos sofistas como ilusionistas, arrogantes e sabichões, e não sábios - como a expressão “sofista” quer dizer em sua origem. Enquanto isso, Sócrates se tornou o ícone do racionalismo crítico ocidental. Ainda hoje, nas pegadas de Platão e Sócrates, o dicionário define um sofisma como um “argumento aparentemente válido, mas não conclusivo”.

Graças a Platão, Fuller nos lembra, os sofistas permaneceram em desgraça por 2.500 anos. Na verdade, ele diz, a figura do intelectual moderno surgiu de uma mescla entre as duas imagens. “Ambos, Protágoras (480-410 AC) - o mais célebres dos sofistas - e Sócrates, nos legaram dois estilos complementares que definem o intelectual”, observa. Meio explorador, como os sofistas ainda hoje são vistos, meio inquisidor, um mestre das perguntas desconcertantes como Sócrates, o intelectual de hoje tem uma imagem dúbia. A daquele que evita tanto o otimismo empresarial estimulado por Protágoras, quanto o pessimismo paranóico a que Sócrates era propenso.

A paranóia - eis outra marca registrada, inconfundível, dos intelectuais. “O paranóico se considera um instrumento inestimável da totalidade da realidade”, Fuller descreve. Como acreditam que a razão tem o poder de modificar o mundo, os intelectuais estão constantemente à procura de conspirações, ou de motivos ocultos sob a realidade das coisas. Respostas a perguntas não formuladas e o mal resultante de atos não-intencionais são dois aspectos que ilustram a imagem do intelectual à procura das sombras que escapam ao observador desatento. Elas podem ser, em muitos casos, de fato, produtos doentios de sua fértil imaginação. Mas, de outro lado, alerta Fuller, a luta do intelectual exige “eterna vigilância”, isto é, exige paranóia.

“Como Batman, que atravessa os céus noturnos de Gotham City à espera de um sinal do morcego requisitando seus serviços, para o intelectual as notícias são como apelos ocultos de um mundo desesperado à procura de orientação”, Steve Fuller compara. Para os intelectuais - assim como para os super-heróis - a vida social é o terreno por excelência da luta sangrenta do Bem contra o Mal. Identificar os dois lados, seja para agir como Bertrand Russel, que acreditava que o Bem sempre triunfa sobre o Mal, seja para agir como Jean-Paul Sartre, para quem a diferença entre o Bem e o Mal depende de qual deles merece a nossa afeição, é a tarefa do intelectual. E é o que alimenta seu gosto fatal pela paranóia.

Mas, e a verdade, onde fica? Quanto a ela, observa Steve Fuller, existem duas maneiras de pensá-la. A primeira busca “só a verdade”; a segunda, “toda a verdade”. A primeira indaga: “essa afirmativa corresponde à realidade?” A segunda quer saber: “a realidade é tudo o que se afirmou, ou algo importante ficou de fora?” Fuller argumenta que os tribunais erram ao desejar “toda a verdade e nada mais que a verdade”, pois, com isso, excluem incertezas e perplexidades, só por medo de que elas escondam falsidades. Mas também aqueles que buscam “toda a verdade” correm graves riscos, ele nos diz. No entender de Fuller, estes erram “ao incluir incertezas na esperança de que possam revelar verdades”. A busca da verdade - que é freqüentemente enfrentada, com duros conflitos íntimos, também pelos jornalistas - inclui necessariamente a tolerância ao erro, implica na convivência com a ignorância. Abrange, e não exclui, a imperfeição.

Eficácia acima da precisão

O ponto alto do livro de Fuller é um estimulante diálogo imaginário entre um intelectual - o livre pensador clássico - e um filósofo - o pensador sistemático da academia. O filósofo é o pensador cauteloso, que freqüenta as salas de aula e que mede as palavras; já o intelectual, sem vínculos que o prendam, atua em várias frentes, sem medir as palavras. Prudente, o filósofo acusa o intelectual de forçar seu ponto de vista sobre as coisas, de reduzir a complexidade do mundo a suas pequenas idéias. O intelectual ironiza os argumentos do filósofo, para quem algo só deve ser afirmado quando corresponde inteiramente à verdade. Orgulha-se, ao contrário, de falar “ao público comum”, isto é, de colocar a eficácia acima da precisão. “Ele espera cometer erros instrutivos que sirvam para ampliar a inteligência coletiva da sociedade”, Fuller o define.

O filósofo ironiza no intelectual sua submissão a prazos, a editores e à mídia. “Os intelectuais não são filósofos operando sob condições difíceis”, defende-se, porém, o intelectual. Mas, afora isso, Fuller acrescenta, também os filósofos se submetem a limites, ainda que limites “de sala de aula”, que envolvem currículos, programas de ensino e títulos. Eles estão tão expostos às interferências públicas quanto eles, intelectuais.

O intelectual de Fuller critica nos filósofos “continentais” (eruditos franceses e alemães, que se opõem ao sentido prático dos doutores ingleses) a ânsia de sempre repetir o que disseram seus mestres. “Desde que você tenha aprendido a pensar como, digamos, Michel Foucault, ou Jurgen Habermas, nunca mais vai precisar pensar por você mesmo”, ele ironiza. Sem arredar pé, o intelectual ressalva, contudo, que nada tem contra Foucault ou contra Habermas, mas “contra seus epígonos, clones e parasitas”. É o filósofo como um repetidor do mestre que ele, sem medir as palavras, ataca. Nele critica, ainda, a “prosa impenetrável”, que exclui os homens comuns.

Mas o filósofo também tem duros reparos a fazer ao intelectual. Nele critica, por exemplo, o “verniz habilidoso”, quer dizer, o brilho dos argumentos rápidos, que no fim seriam apenas uma “mistificação obscurantista”. “Considero um problema o modo como você politizou a história da ciência”, o filósofo desabafa, cansado dos argumentos transitórios do intelectual. Este, porém, não se abala: “Sim, é por isso que você é um filósofo e eu sou um intelectual”, distingue. Para um, as palavras são fim; para outro, meio.

Enquanto o filósofo prefere a “profundidade”, o intelectual opta pela “abrangência” - que é desprestigiada na academia, mas muito popular nos institutos de pesquisa. Para o intelectual, a vida acadêmica - com suas imersões “profundas” - é a grande responsável pelo surgimento de uma superstição em relação à vida intelectual. O intelectual prefere a abrangência à profundidade porque se recusa a acreditar que o saber possa se restringir a poucas pessoas, seja objeto apenas de nobres especialistas “cujas palavras não somente são reverenciadas pelos acadêmicos, como também lhes serve de modelos para discursos”. Não esconde sua aversão à rotina de escola e aos rituais de qualificação. “Não considero as universidades como fabricantes primordiais de padrões intelectuais e, muito menos, de gosto”.

Para o intelectual, as idéias só importam se estão disseminadas pelo mundo, se agem sobre ele. “A idéia de que todas as pessoas são importantes, e igualmente importantes, não é só um princípio político, mas também um princípio epistêmico”, ele argumenta. “Vocês, intelectuais, reduzem de tal forma a complexidade das questões que terminam por solapar seu claro objetivo de dizer a verdade ao poder”, rebate o filósofo. Mas, para o intelectual, os filósofos hesitam sempre que são chamados a fazer afirmações sobre o que é incerto. “Vocês preferem livrar-se das incertezas, ou emprestar sua voz a uma versão da realidade menos incerta”, ele protesta. Em outras palavras: seja como for, os filósofos fazem um retorno à metafísica, ele acusa. Entre o real e as idéias, ficam com as idéias.

Tidos como “birutas”

Na terceira parte de seu livro, Steve Fuller tenta responder a algumas questões difíceis que ajudam a definir o perfil do intelectual. “Qual é a atitude dos intelectuais em relação às idéias?”, ele se pergunta. Existem dois papéis opostos para o intelectual, responde: o de censor, que veta o cultivo de certas idéias, e o de advogado do diabo, que expõe as pessoas a idéias inesperadas. O primeiro prolifera nas paisagens autoritárias, o segundo, nos cenários democráticos. “Como um intelectual adquire credibilidade?”, pergunta ainda. Demonstrando independência de pensamento, Fuller responde. “Exibindo autonomia, quer dizer, quando é capaz de adotar posições que não parecem ser do seu interesse ostentar.”

Mas, ele se apressa a ressaltar, é fácil mostrar autonomia quando você vem de um ambiente abastado, ou aristocrático - como o Buda. É muito mais difícil, e dolorido, se você vem de um ambiente proletário, ou pobre. Também a autonomia de pensamento não está descolada do real. Nos dois casos, a grande dificuldade enfrentada hoje pelos intelectuais, Fuller avalia, se dá quando ele vê suas idéias rebeldes se tornarem consagradas, se tornarem senso comum. Aí, sim, é realmente difícil sustentá-las, é muito doloroso conservar uma posição.

Outra dificuldade para o intelectual, Fuller sustenta, é a convivência serena com estigmas dolorosos, como o de “biruta”. Intelectuais são tidos como “birutas” porque se movimentam por temas variados, não se apegam a posições fixas e pensam nas horas e situações mais inadequadas, em que ninguém mais se atreve a pensar. É mais cômodo ser o intelectual do tipo “câmara acústica”, ele argumenta, um daqueles sujeitos que se limita a traduzir o cotidiano para o perene. Mas a verdade é que este pensador pacato, que se limita a difundir e aprimorar o senso comum, não chega a tocar na realidade. E, portanto, sequer chega a ser um intelectual.


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