domingo, 2 de abril de 2006

Somos cúmplices da corrupção - Luiz Antonio Ryff - no mínimo, 28.03.06

Não é à toa que o escândalo do mensalão está acabando melancolicamente em pizza, ao som do samba atravessado da deputada petista Ângela Guadagnin, e sem provocar grandes comoções na sociedade. Uma pesquisa inédita revela que o eleitor brasileiro é conivente com a corrupção política e que a falta de ética não é um problema apenas da classe dirigente: 75% dos brasileiros acreditam que cometeriam um dos atos de corrupção listados na pesquisa se estivessem no lugar dos políticos denunciados. “Ao imaginar que poderia cometer um desses atos, o eleitor provavelmente é tolerante com o político que o fizer”, explica a cientista social Sílvia Cervellini, diretora de Atendimento do Ibope Opinião, responsável pelo trabalho.

Com o questionador título de “Corrupção na Política: Eleitor Vítima ou Cúmplice?”, o estudo foi apresentado no 2º Congresso Brasileiro de Pesquisa, realizado em São Paulo na semana passada. Os resultados da pesquisa realizada com 2.001 pessoas em janeiro respondem à pergunta. Fica claro que a maioria dos eleitores brasileiros tolera algum tipo de corrupção por parte de seus representantes ou governantes eleitos.

O estudo revela também que a transgressão de leis para obter benefícios materiais pessoais é praxe na sociedade. Essas infrações ocorrem na sociedade como um todo. “A pesquisa é provocativa”, admite Sílvia. “É importante deixar de demagogia e parar para pensar no que é preciso fazer para aumentar a ética no país”.

Cada um se acha melhor do que todos

Há alguns componentes interessantes. Apesar de amplamente disseminada na sociedade, a tolerância à corrupção é menor entre as mulheres, os mais velhos e os de menor escolaridade. Pessoas da região Norte ou Centro-Oeste são mais rígidas (não cometeriam qualquer irregularidade) do que as do Sudeste (um pouco mais tolerantes que a média).

A pesquisa listou 13 atos de corrupção política:

1) Escolher familiares ou pessoas conhecidas para cargos de confiança;
2) Mudar de partido em troca de dinheiro ou cargo/emprego para familiares/pessoas conhecidas;
3) Contratar, sem licitação, empresas de familiares para prestação de serviços públicos;
4) Pagar despesas pessoais não autorizadas (como compras no cartão de crédito ou combustível) com dinheiro público;
5) Aproveitar viagens oficiais para lazer próprio e de familiares;
6) Desviar recursos das áreas de saúde e educação para utilizar em outras áreas;
7) Aceitar gratificações ou comissões para escolher uma empresa que prestará serviços ou venderá produtos ao governo;
8) Usar “caixa 2” em campanhas eleitorais;
9) Superfaturar obras públicas e desviar o dinheiro para a campanha eleitoral do político;
10) Superfaturar obras públicas e desviar o dinheiro para o patrimônio pessoal/familiar do político;
11) Deputado ou Senador receber dinheiro de empresas privadas para fazer e/ou aprovar leis que as beneficiem;
12) O político contratar “funcionários fantasmas”, ou seja, pessoas que recebem salários do poder público sem trabalhar e ele ficar com esse dinheiro;
13) Trocar o voto a favor do governo por um cargo para familiar ou amigo;

Os entrevistados tinham de avaliar essas ilegalidades, indicando quais eram consideradas graves e inaceitáveis. Depois, tinham de analisar cada uma, revelando a percepção que têm da incidência da prática desses atos ilícitos por três categorias distintas: políticos ou governantes, pelos brasileiros e pelo próprio entrevistado.

Em cada caso, eram obrigados a classificar ainda o nível em que os atos seriam cometidos. As opções eram três:

1) “Por todos ou pela maioria”, “Sempre ou algumas vezes”;
2) “Por uma minoria” e “Só se não tivesse outro jeito”;
3) “Por nenhum” ou “Não faria de jeito nenhum”.

Quanto mais longe do entrevistado, maior a incidência de percepção de um comportamento corrupto. Ou seja, os pesquisados têm uma auto-imagem melhor do que têm dos brasileiros em geral. E políticos são vistos de forma extremamente negativa. “Mas isso é um fenômeno mundial”, alerta Sílvia. “E ocorre em qualquer tema. As pessoas tendem a se ver de forma mais positiva. É uma espécie de defesa psicológica”.

Para os entrevistados, 100% dos políticos e governantes cometeriam ao menos um dos 13 atos de corrupção. É o mesmo percentual para brasileiros. Mas 75% dos entrevistados transgrediriam algum dos 13 itens listados como atos de corrupção. Isso significa que apenas um em cada quatro brasileiros afirma que não cometeria a ilegalidade.

Tais dados, segundo o estudo, ilustram numericamente a percepção de que “todos os políticos brasileiros são corruptos, mas infelizmente também parecem indicar que a falta de ética não atinge de forma grave somente a classe política brasileira”.

Os entrevistados têm uma reação dúbia à corrupção. Ao mesmo tempo em que condenam as irregularidades, reconhecem que cometeriam atos ilícitos se tivessem oportunidade. Um exemplo: 78% consideram inaceitável aproveitar viagens oficiais para lazer próprio e de familiares. Mas o percentual dos que afirmam que não fariam isso é bem menor: apenas 57%.

Em geral, as transgressões ligadas a familiares e amigos são vistas com maior condescendência - 43% dos entrevistados não consideram grave escolher familiares para cargos de confiança. E quatro em cada dez entrevistados fariam isso se pudessem.

“Ao mesmo tempo em que dizem ter vergonha de seus representantes pela forma como tratam a coisa pública, alguns admitem que votariam em candidatos que lhe oferecessem vantagens pessoais”, diz o estudo. Como diria Rochefoucauld, a hipocrisia é uma homenagem que o vício paga à virtude.

Ilegalidades cotidianas

Antes de abordar a corrupção política, a pesquisa verificou a incidência de práticas de irregularidade no dia-a-dia da população. Era a maneira de ligar a ética cotidiana com a do ambiente político. Também foram usados 13 itens, e com recorte semelhante à outra parte do trabalho. O entrevistado dizia se já cometeu alguma das transgressões listadas, se “pessoas conhecidas” tinham praticado as mesmas ilicitudes e se achava que “os brasileiros em geral” praticam tais desvios.

As treze ilegalidades são as seguintes:

1) Quando tem oportunidade, tenta dar uma “caixinha” ou “gorjeta” para se livrar de uma multa;
2) Sonega impostos;
3) Recebe benefícios do governo, sabendo que não tem direito a eles;
4) Adquire documentos falsos ou falsifica documentos para obter algum tipo de vantagem (exemplo: identidade, carteira de motorista, carteirinha de estudante, diploma etc);
5) Quando tem uma oportunidade, pede mais de um recibo por um mesmo procedimento médico para obter mais reembolso do plano de saúde;
6) Compra produtos que copiam os originais de marcas famosas sabendo que são piratas ou falsificados;
7) Quando tem uma oportunidade, faz ligação clandestina ou “gato” de TV a cabo, ou seja, aproveita a instalação do vizinho;
8) Quando tem uma oportunidade, faz ligação clandestina ou “gato” de água ou luz;
9) Se tem chance, pega ou consome produtos em padarias, supermercados ou outros estabelecimentos comerciais sem pagar;
10) Apresenta atestados médicos falsos no trabalho ou na escola;
11) Se tem seguro de carro ou de qualquer outro tipo, quando tem uma oportunidade, frauda o seguro;
12) Compra algo sabendo que é roubado;
13) Falsifica atestado de saúde ou apresenta atestado de saúde falsificado para conseguir aposentadoria precoce;

Mais uma vez, o entrevistado acha que comete menos irregularidades do que as pessoas que lhe são próximas. E tem a visão de que os brasileiros em geral (ou seja, o “outro”, que não lhe é tão próximo) são bem mais transgressores. Um exemplo: 40% dos entrevistados nunca compraram produtos que copiam os originais de marcas famosas, mesmo sabendo que são falsificações. Mas eles dizem que apenas 11% dos seus conhecidos tiveram o mesmo comportamento. E acreditam que míseros 2% dos brasileiros nunca fizeram algo parecido.

Antes de iniciar o trabalho, havia uma suposição entre os pesquisadores de que a maioria dos brasileiros tinha algum tipo de desvio ético e tolerava a corrupção. O estudo confirmou isso. Embora se considere razoavelmente honesto, o eleitor pratica ou aceita uma diversidade de transgressões à lei no seu cotidiano. E é claro que, quanto mais ilegalidades o eleitor cometer ou aceitar no seu dia-a-dia, mais tolerante ele tende a ser com os atos de corrupção no Congresso.

Mídia paternaliza eleitores

Por isso, episódios como a dancinha da deputada petista Ângela Guadaligni no plenário da Câmara, comemorando a absolvição de um colega envolvido no esquema do mensalão, não devem chocar tanto o eleitor comum quanto chocou a imprensa.

Aliás, é curioso que a mídia, que cumpre um papel de mediador entre a classe dirigente e a sociedade, demonstre tanta indignação com casos de corrupção se, como mostra a pesquisa, os dois extremos dessa relação não lhe dão tanta importância.

Sílvia diz que a opinião pública aceita, e até espera, esse discurso por parte da mídia. Mas o comportamento é bem diferente. Ela acha que, embora a ética seja um valor absoluto, a maioria não vê dessa forma. As pessoas enxergam com gradações, em que é possível ser mais ou menos ético.

“Há uma tendência da mídia em paternalizar o eleitor”, diz Sílvia. Como se o cidadão fosse uma vítima da falta de ética de suas elites. Mas o estudo rejeita completamente essa vitimização do eleitor. Ele é cúmplice e se identifica com boa parte das transgressões cometidas.

Mesmo que a pesquisa trace um retrato bastante duro da classe política na ótica do eleitor. Entre os entrevistados (uma amostra nacional representativa do eleitorado):

82% acreditam que a classe política é desonesta;
73% acham que é preguiçosa;
87% acreditam que agem pensando somente em benefício próprio;
28% crêem que, após as CPIs, o Brasil será um país mais honesto (56% acham que continuará a mesma coisa).

Mas isso não deve fazer muita diferença na próxima eleição. Após a pesquisa, e com a experiência acumulada como diretora de um dos maiores institutos de opinião do país, Sílvia acredita que o escândalo do mensalão não afetará a forma de a população votar. A tendência é de que não ocorra uma grande renovação política. E a questão ética não será, naturalmente, o tema principal da campanha. “Pode até ser, mas será preciso um esforço muito grande de quem quiser usar isso.” No rescaldo do escândalo, ela avalia que o “timing” para fazer alguma mudança já passou. “A impressão é de que ficou o dito pelo não dito.”

Entre os motivos para isso, ela lista alguns. Acha que as responsabilidades ficaram difusas. Quem tinha uma prática diferente não mostrou isso. E, desta vez, a figura do presidente não ficou no centro da polêmica, como ocorreu com Fernando Collor. Além disso, ainda há uma identificação muito grande do eleitorado com Lula. “Certamente, seria mais difícil de perdoar outro político”, acredita Silvia.

Infelizmente, entre os mandatos dos dois presidentes, aumentou a desilusão com os rumos políticos. A esperança de que o Brasil se torne um país mais honesto diminuiu. Em 1992, no auge do processo contra Collor, 44% achavam que sairíamos melhor. Hoje, a despeito das inúmeras CPIs, esse índice é de 28%.

Até por isso, Silvia admite que é possível haver um aumento do voto nulo entre os eleitores de escolaridade mais alta e os formadores de opinião, até mesmo nas camadas mais populares. Seria um voto de protesto com a desilusão causada pelo comportamento do PT, que era visto por muitos como o último bastião de honestidade. “Afinal, se todos são iguais mesmo, o que fazer?”, questiona-se o eleitor.

Mas ela acha que o eleitor será pragmático. As razões do voto serão ditadas pelos benefícios que cada um poderá receber. E a visão do que é melhor para o país dependerá da ótica que cada um tem do Brasil e será filtrada pelos próprios interesses. “Seria utópico achar que as pessoas votam pensando no interesse coletivo.”

Quem quiser mais detalhes, poderá consultar o site do Ibope Opinião, que publicará toda a pesquisa em breve.

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