segunda-feira, 17 de abril de 2006

Motivo - Cecília Meirelles

Enviado pela grande amiga Thaís Zara
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Motivo

Cecília Meirelles


Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
-não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.



Cecília Benevides de Carvalho Meirelles nasceu em 1901, no Rio de Janeiro. Ainda bem jovem, teve seu primeiro livro, Espectros, publicado em 1919. Em versos regulares ou livres, longos ou curtos, a autora revela habilidade no comando da riqueza lexical e dos ritmos da língua portuguesa. Outro aspecto de sua poesia é a linguagem sensorial, intuitiva e feminina, empregada em versos plenos num jogo hábil de sons e musicalidade. Recordação transfigura a realidade pelos elementos sensoriais. Cecília morreu no Rio de Janeiro, em 1964.

domingo, 2 de abril de 2006

Sobre mulheres e homens - Roberto Pompeu de Toledo - Veja, 05.04

O argumento extremo da Guadagnin,
a ministra Ellen Gracie, a diva
Sarah Bernhardt e um defensor
da masculinidade

A deputada Angela Guadagnin gastou seu mais desesperado cartucho, na semana passada, ao puxar do fundo do baú, em discurso na tribuna da Câmara, o argumento estético. "Porque sou gorda, porque não pinto os cabelos...", disse ela – e, num crescendo de indignação: "Porque sou do PT..." Seria por isso que foi tão censurada pela dança com que comemorou a absolvição do colega João Magno, um dos beneficiários do valerioduto. O argumento pretende cortar fundo. Para testá-lo, imaginemos a contraprova de uma bonitona, magrinha, e que não tem cabelos grisalhos na mesma cena. Por exemplo, a ex-deputada Rita Camata, que além de tudo ainda conta com o fato de não ser do PT, para citar outra das desvantagens que, segundo a Guadagnin, somaram em seu desfavor. Imaginemos Rita a evoluir entre as cadeiras do plenário, bracinho para cá e bracinho para lá, sorriso nos lábios, quadris requebrando, depois da absolvição de um colega de partido que tivesse encaçapado uma bolada de obscura origem.

Pensando bem... Não. Não há razão para imaginar que a situação lhe fosse mais favorável do que foi à deputada Guadagnin. Podia ser até pior: lá vai ela, essa Rita, esbanjando alegria quando devia ficar quieta, e ainda por cima com essa empáfia de gente bonita, esse exibicionismo... Não, deputada Guadagnin. A gordura e os cabelos grisalhos até funcionaram a seu favor. Deram um ar de despretensão à dancinha, no plano artístico. Funcionaram como atenuantes.

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A visita da ministra Ellen Gracie Northfleet, do Supremo Tribunal Federal, à Comissão de Justiça do Senado, onde seria sabatinada antes de assumir a presidência do Conselho Nacional de Justiça, foi mais ou menos como a visita de Sarah Bernhardt a São Paulo, em 1886. Tanto entusiasmo a diva francesa provocou nos estudantes da Faculdade de Direito que eles desatrelavam os cavalos e puxavam, eles próprios, a carruagem em que ela se deslocava pela cidade. "Ouvi falar muito de sua competência, de seu conhecimento jurídico e de sua intelectualidade, mas meu voto leva ainda em conta a beleza e o charme", disse à ministra Gracie o senador Wellington Salgado. Outro senador, Mozarildo Cavalcanti, invocou a privilegiada perspectiva que lhe confere sua especialidade profissional para, na pessoa da ministra, estender uma homenagem a todas as mulheres: "Como ginecologista, aprendi a lidar de perto com as mulheres, a entender muito profundamente a sensibilidade feminina".

A propósito da visita da Bernhardt, Eça de Queiroz, que não perdoava essas coisas, escreveu que dali para a frente as divas em visita a São Paulo diriam aos criados, antes de sair do hotel: "Estou pronta. Mande atrelar os estudantes". Ellen Gracie, na próxima visita ao Congresso, poderá exigir uma carruagem. Dirá, antes de deixar o Supremo: "Estou pronta. Mande atrelar os senadores". Ellen Gracie assumirá agora a presidência do Supremo Tribunal. Imagine-se o que está por vir. Ficará provado não que as mulheres não estejam preparadas para presidir o Supremo, mas que o Brasil não está preparado para ter uma mulher à frente do Supremo.

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Harvey C. Mansfield é um eminente professor de ciência política em Harvard, tradutor para o inglês de Maquiavel e Tocqueville, ideologicamente alinhado com os neoconservadores que se incumbem da forragem intelectual do governo Bush. Mansfield, fugindo de seus temas habituais, lançou um livro intitulado Manliness (Masculinidade), algo que, a seu ver, se encontra em via de desaparecimento. O professor foi entrevistado recentemente pela jornalista Deborah Solomon, do New York Times, que começou por lhe perguntar o que seria a masculinidade. Resposta: "Numa rápida definição, é ter confiança numa situação de risco". Mas a tecnologia não diminuiu muito as situações de risco, especialmente as de risco físico?, volta a jornalista. Mansfield diz que sim, mas "masculinidade é mais uma qualidade da alma".

Segue a entrevista, em águas mais ou menos turbulentas. A certa altura, para provar que "certas coisas não mudam", o professor argumenta que "98% dos porteiros de Nova York são homens". A jornalista contra-argumenta que cada vez menos profissões dependem de força física, e replica: "Quando foi a última vez que o senhor fez algo que precisava de força física?" Mansfield: "É verdade que nada em minha carreira dependeu de força física, mas minhas relações com as mulheres, sim". Em que tipo de situação?, quis saber a jornalista. "Levantando coisas, abrindo coisas. Minha mulher é muito pequena", responde Mansfield. "O que o senhor levanta?", insiste a jornalista. Mansfield: "Móveis. Não toda noite, mas rotineiramente". E eis como um defensor da masculinidade acaba por reduzir os homens a levantadores de cadeiras e mesas, camas e criados-mudos, meros reprodutores do mudo ofício das alavancas, simples alternativas, nos melhores casos, ao útil trabalho dos macacos hidráulicos.

O país das várias éticas - Roberto Kaz - no mínimo, 29.03.06

A peça “Bonitinha, mas Ordinária”, de Nelson Rodrigues, começa com o seguinte diálogo entre os personagens Edgard e Peixoto:

PEIXOTO: Você está alto, eu estou alto. É hora de rasgar o jogo. De tirar as máscaras. Primeira pergunta: - Você é o que se chama de mau-caráter?

EDGARD: Por quê? (...)

PEIXOTO: Espera. Outra pergunta: - Você quer subir na vida? É ambicioso?

EDGARD: Se sou ambicioso? Pra burro? Você conhece o Otto? O Otto Lara Resende? O Otto! (...) O Otto é de arder! É de lascar! E o Otto disse uma que eu considero o fino! O fino! (...) Disse: “O mineiro só é solidário no câncer.” Que tal? (...)

PEIXOTO: Uma frase!

EDGARD: Mas uma frase que se enfiou em mim. Que está me comendo por dentro. Uma frase roedora. E o que há por trás? Sim, por trás da frase? O mineiro só é solidário no câncer! Mas olha a sutileza. Não é bem o mineiro. Ou não é só o mineiro. É o homem, o ser humano. Eu, o senhor, ou qualquer um só é solidário no câncer. Compreendeu?

PEIXOTO: E daí?

EDGARD: Daí eu posso ser um mau-caráter. E pra que pudores ou escrúpulos se o mineiro só é solidário no câncer? A frase do Otto mudou minha vida. Quero subir sim. Quero vencer.

PEIXOTO: Bem, uma curiosidade: - O que é que você faria, o quê, pra ficar rico? Cheio do burro? Milionário?

EDGARD: Eu faria tudo! Tudo! Com a frase do Otto no bolso, não tenho bandeira. (...) O mineiro só é solidário no câncer. E eu sou mau-caráter! Pronto!”

Tal qual apontado pela pesquisa do Ibope divulgada ontem por NoMínimo, Edgard e Peixoto não estariam assim tão distantes do brasileiro médio. Como relatou o repórter Luiz Antonio Ryff, “a falta de ética não é um problema apenas da classe dirigente: 75% dos brasileiros acreditam que cometeriam um dos atos de corrupção listados na pesquisa se estivessem no lugar dos políticos denunciados”.

NoMinimo conversou com Arnaldo Jabor, com a jornalista política Lúcia Hipólito, com a antropóloga Lívia Barbosa e com a psicanalista Tereza Pinheiro para saber por que o brasileiro se mostra indignado na vida pública, mas é conivente com a ilegalidade na vida privada. Todos reconhecem a multiplicidade ética dos nossos cidadãos.

O cidadão e o indivíduo

Jabor lembra que o brasileiro tem uma tradição secular de tolerância com a corrupção: “Na época da Corte, era quase um heroísmo roubar a Coroa, já havia uma fascinação pelo canalha que tira do Estado. No Brasil, a canalhice é vivida como inteligência. Há o mito de Macunaíma, o herói sem caráter, há a louvação da malandragem no Rio de Janeiro. Nós não temos o compromisso com a verdade que tem o anglo-saxão. O Clinton quase caiu por causa de uma mentira. Na nossa formação ibérica, o homem honesto passou a ser chamado de “caxias”, “careta”, “cdf”. E o escroto passou a ser louvado como malandro, esperto, “espada”, como “aquele que se deu bem”. Aqui, não há o senso de coletividade do anglo-saxonismo, não há a percepção de que o que é público pertence a todos.”

A jornalista e cientista política Lúcia Hipólito concorda que, no Brasil, o bem público “não é de todos, mas de ninguém” e aponta: “Dona Marisa, por exemplo, não achou nada demais plantar uma estrela vermelha no Palácio do Alvorada, pois aquilo é um espaço público, e o público é de ninguém”. Outra referência da jornalista: “A Benedita da Silva não viu problema algum em gastar o dinheiro público para ir rezar em Buenos Aires, pois, na lógica dela, aquele dinheiro não tinha dono.”

Lúcia diz que a pesquisa do Ibope não chega revelar uma grande novidade, mas sugere duas questões que devem ser pensadas pelo país: “Em primeiro lugar, fica claro que, no Brasil, há uma distinção entre o ‘cidadão’ e o ‘indivíduo’. O ‘cidadão’ quer mais transporte coletivo, o ‘indivíduo’ não quer o ponto de ônibus em frente à sua casa. O ‘cidadão’ reclama da imundice da cidade, o ‘indivíduo’ joga uma guimba de cigarro no meio da rua.”

A dicotomia reflete-se também nas relações, lembra Lúcia: “A mãe que pede ética na política é a mesma que pára o carro em fila dupla, ‘um instantinho só’, para pegar o filho na creche.” Ou seja: “A nossa cidadania está centrada na atividade política. Na vida privada, ela perde a vez. No Brasil - e talvez esse não seja um fenômeno apenas nacional -, você tem o divórcio e a convivência entre ‘cidadão’ e ‘indivíduo’ na mesma pessoa.”

Lúcia faz mais uma crítica: “Parece-me faltar uma politização da pesquisa. É fácil para nós, que temos três refeições por dia, criticarmos a venda de voto. Mas e para quem não tem um teto sobre a cabeça? Não condeno tanto a venda. A ação do Estado contribui para atitudes como essa, na medida, por exemplo, em que se cobra um imposto exorbitante. Enquanto os impostos não diminuírem, a sonegação não desaparecerá. Há, além disso, um problema semântico: brasileiro não paga imposto. Brasileiro é contribuinte, como se aquilo fosse apenas um ‘apoio’ ao Estado.”

A honra não vale nada

Quanto aos rumos da próxima eleição presidencial, a jornalista discorda da cientista social Síliva Cervellini, responsável pela pesquisa do Ibope, quando ela diz que será preciso “um esforço muito grande” de qualquer candidato para usar, com êxito, a ética como tema central da campanha: “Uma eleição é uma disputa de caráter, sim. Na última eleição entre o Covas e o Maluf pelo governo de São Paulo, o Maluf estava na frente e acabou perdendo no segundo turno. A ética conta. Se não contasse, o presidente Lula não teria demitido o ministro da Fazenda.”

Lúcia faz mais uma distinção: “Para se falar de ética, é preciso fazer uma dicotomia entre pessoa física e jurídica. Há certos procedimentos que são aceitáveis na pessoa física, mas não na jurídica. Você pode pagar uma amante com seu salário, mas se uma autoridade paga a amante com dinheiro público, o povo tem o direito de saber e vai condenar o ato.”

Há razões para as contradições, sugere a antropóloga Lívia Barbosa, citando os estudos de Roberto DaMatta para dizer que, no Brasil, “não há falta de ética, mas várias éticas aplicáveis em situações diferentes”. A autora do livro “Jeitinho Brasileiro” explica: “Por isso, há tamanha contradição entre as atitudes dos brasileiros. Há uma ética para o familiar, outra para o amigo, outra para o inimigo, outra para o espaço público e por aí vai. Nessa lógica, a aplicação de leis e decretos pode ser ‘particularizada’, dependendo do que convier em cada situação.”

A antropóloga registra: “Quando se cobra o uso de uma única ética no Brasil, a pessoa acaba sendo taxada de ‘quadrada’, ‘de direita’, ‘autoritária’. Se o brasileiro é conivente com a corrupção dos altos escalões políticos, é porque a Assembléia, a Câmara, o Senado e a Presidência são espelhos da sociedade que está aí. É bom lembrar que formamos uma democracia representativa. O problema é que, aqui, o código moral acaba, por vezes, se sobrepondo ao Código Civil. O que surge a partir daí é um sentido de total desarticulação social.”

Para a psicanalista Tereza Pinheiro, a desarticulação social não é conseqüência, mas causa da maleabilidade de valores do brasileiro: “O ponto de partida já é complicado, mas a raiz histórica não responde a tudo. De um lado, é verdade, temos uma república fundada por uma elite, sem base alguma no bem comum, sem uma justiça igualitária. Por outro lado, com o neoliberalismo, o ideal de bem comum fica ainda mais esfacelado. A lei do mercado é como uma lei da selva: o mundo dá sinais de que o individualismo é a única forma de vida. Assim, um pai que ganha R$ 2 mil por mês acaba se endividando para levar a família à Disney, pois esse é o ideal de alegria que se vende à sociedade. O bombardeamento diário de números de consumo, de contas de superávit acaba gerando isso. Não há articulação política para o bem comum. Por isso, a vergonha, hoje, rompeu com a honra. Antes, as pessoas sentiam vergonha de algo que elas consideravam errado. Hoje, sem a idéia de bem comum, a honra não vale nada. Não tem por que a falta de ética chocar.”

É assim que tantos brasileiros, como Edgard e Peixoto, podem declarar, sem constrangimento, a lassidão de caráter.

Somos cúmplices da corrupção - Luiz Antonio Ryff - no mínimo, 28.03.06

Não é à toa que o escândalo do mensalão está acabando melancolicamente em pizza, ao som do samba atravessado da deputada petista Ângela Guadagnin, e sem provocar grandes comoções na sociedade. Uma pesquisa inédita revela que o eleitor brasileiro é conivente com a corrupção política e que a falta de ética não é um problema apenas da classe dirigente: 75% dos brasileiros acreditam que cometeriam um dos atos de corrupção listados na pesquisa se estivessem no lugar dos políticos denunciados. “Ao imaginar que poderia cometer um desses atos, o eleitor provavelmente é tolerante com o político que o fizer”, explica a cientista social Sílvia Cervellini, diretora de Atendimento do Ibope Opinião, responsável pelo trabalho.

Com o questionador título de “Corrupção na Política: Eleitor Vítima ou Cúmplice?”, o estudo foi apresentado no 2º Congresso Brasileiro de Pesquisa, realizado em São Paulo na semana passada. Os resultados da pesquisa realizada com 2.001 pessoas em janeiro respondem à pergunta. Fica claro que a maioria dos eleitores brasileiros tolera algum tipo de corrupção por parte de seus representantes ou governantes eleitos.

O estudo revela também que a transgressão de leis para obter benefícios materiais pessoais é praxe na sociedade. Essas infrações ocorrem na sociedade como um todo. “A pesquisa é provocativa”, admite Sílvia. “É importante deixar de demagogia e parar para pensar no que é preciso fazer para aumentar a ética no país”.

Cada um se acha melhor do que todos

Há alguns componentes interessantes. Apesar de amplamente disseminada na sociedade, a tolerância à corrupção é menor entre as mulheres, os mais velhos e os de menor escolaridade. Pessoas da região Norte ou Centro-Oeste são mais rígidas (não cometeriam qualquer irregularidade) do que as do Sudeste (um pouco mais tolerantes que a média).

A pesquisa listou 13 atos de corrupção política:

1) Escolher familiares ou pessoas conhecidas para cargos de confiança;
2) Mudar de partido em troca de dinheiro ou cargo/emprego para familiares/pessoas conhecidas;
3) Contratar, sem licitação, empresas de familiares para prestação de serviços públicos;
4) Pagar despesas pessoais não autorizadas (como compras no cartão de crédito ou combustível) com dinheiro público;
5) Aproveitar viagens oficiais para lazer próprio e de familiares;
6) Desviar recursos das áreas de saúde e educação para utilizar em outras áreas;
7) Aceitar gratificações ou comissões para escolher uma empresa que prestará serviços ou venderá produtos ao governo;
8) Usar “caixa 2” em campanhas eleitorais;
9) Superfaturar obras públicas e desviar o dinheiro para a campanha eleitoral do político;
10) Superfaturar obras públicas e desviar o dinheiro para o patrimônio pessoal/familiar do político;
11) Deputado ou Senador receber dinheiro de empresas privadas para fazer e/ou aprovar leis que as beneficiem;
12) O político contratar “funcionários fantasmas”, ou seja, pessoas que recebem salários do poder público sem trabalhar e ele ficar com esse dinheiro;
13) Trocar o voto a favor do governo por um cargo para familiar ou amigo;

Os entrevistados tinham de avaliar essas ilegalidades, indicando quais eram consideradas graves e inaceitáveis. Depois, tinham de analisar cada uma, revelando a percepção que têm da incidência da prática desses atos ilícitos por três categorias distintas: políticos ou governantes, pelos brasileiros e pelo próprio entrevistado.

Em cada caso, eram obrigados a classificar ainda o nível em que os atos seriam cometidos. As opções eram três:

1) “Por todos ou pela maioria”, “Sempre ou algumas vezes”;
2) “Por uma minoria” e “Só se não tivesse outro jeito”;
3) “Por nenhum” ou “Não faria de jeito nenhum”.

Quanto mais longe do entrevistado, maior a incidência de percepção de um comportamento corrupto. Ou seja, os pesquisados têm uma auto-imagem melhor do que têm dos brasileiros em geral. E políticos são vistos de forma extremamente negativa. “Mas isso é um fenômeno mundial”, alerta Sílvia. “E ocorre em qualquer tema. As pessoas tendem a se ver de forma mais positiva. É uma espécie de defesa psicológica”.

Para os entrevistados, 100% dos políticos e governantes cometeriam ao menos um dos 13 atos de corrupção. É o mesmo percentual para brasileiros. Mas 75% dos entrevistados transgrediriam algum dos 13 itens listados como atos de corrupção. Isso significa que apenas um em cada quatro brasileiros afirma que não cometeria a ilegalidade.

Tais dados, segundo o estudo, ilustram numericamente a percepção de que “todos os políticos brasileiros são corruptos, mas infelizmente também parecem indicar que a falta de ética não atinge de forma grave somente a classe política brasileira”.

Os entrevistados têm uma reação dúbia à corrupção. Ao mesmo tempo em que condenam as irregularidades, reconhecem que cometeriam atos ilícitos se tivessem oportunidade. Um exemplo: 78% consideram inaceitável aproveitar viagens oficiais para lazer próprio e de familiares. Mas o percentual dos que afirmam que não fariam isso é bem menor: apenas 57%.

Em geral, as transgressões ligadas a familiares e amigos são vistas com maior condescendência - 43% dos entrevistados não consideram grave escolher familiares para cargos de confiança. E quatro em cada dez entrevistados fariam isso se pudessem.

“Ao mesmo tempo em que dizem ter vergonha de seus representantes pela forma como tratam a coisa pública, alguns admitem que votariam em candidatos que lhe oferecessem vantagens pessoais”, diz o estudo. Como diria Rochefoucauld, a hipocrisia é uma homenagem que o vício paga à virtude.

Ilegalidades cotidianas

Antes de abordar a corrupção política, a pesquisa verificou a incidência de práticas de irregularidade no dia-a-dia da população. Era a maneira de ligar a ética cotidiana com a do ambiente político. Também foram usados 13 itens, e com recorte semelhante à outra parte do trabalho. O entrevistado dizia se já cometeu alguma das transgressões listadas, se “pessoas conhecidas” tinham praticado as mesmas ilicitudes e se achava que “os brasileiros em geral” praticam tais desvios.

As treze ilegalidades são as seguintes:

1) Quando tem oportunidade, tenta dar uma “caixinha” ou “gorjeta” para se livrar de uma multa;
2) Sonega impostos;
3) Recebe benefícios do governo, sabendo que não tem direito a eles;
4) Adquire documentos falsos ou falsifica documentos para obter algum tipo de vantagem (exemplo: identidade, carteira de motorista, carteirinha de estudante, diploma etc);
5) Quando tem uma oportunidade, pede mais de um recibo por um mesmo procedimento médico para obter mais reembolso do plano de saúde;
6) Compra produtos que copiam os originais de marcas famosas sabendo que são piratas ou falsificados;
7) Quando tem uma oportunidade, faz ligação clandestina ou “gato” de TV a cabo, ou seja, aproveita a instalação do vizinho;
8) Quando tem uma oportunidade, faz ligação clandestina ou “gato” de água ou luz;
9) Se tem chance, pega ou consome produtos em padarias, supermercados ou outros estabelecimentos comerciais sem pagar;
10) Apresenta atestados médicos falsos no trabalho ou na escola;
11) Se tem seguro de carro ou de qualquer outro tipo, quando tem uma oportunidade, frauda o seguro;
12) Compra algo sabendo que é roubado;
13) Falsifica atestado de saúde ou apresenta atestado de saúde falsificado para conseguir aposentadoria precoce;

Mais uma vez, o entrevistado acha que comete menos irregularidades do que as pessoas que lhe são próximas. E tem a visão de que os brasileiros em geral (ou seja, o “outro”, que não lhe é tão próximo) são bem mais transgressores. Um exemplo: 40% dos entrevistados nunca compraram produtos que copiam os originais de marcas famosas, mesmo sabendo que são falsificações. Mas eles dizem que apenas 11% dos seus conhecidos tiveram o mesmo comportamento. E acreditam que míseros 2% dos brasileiros nunca fizeram algo parecido.

Antes de iniciar o trabalho, havia uma suposição entre os pesquisadores de que a maioria dos brasileiros tinha algum tipo de desvio ético e tolerava a corrupção. O estudo confirmou isso. Embora se considere razoavelmente honesto, o eleitor pratica ou aceita uma diversidade de transgressões à lei no seu cotidiano. E é claro que, quanto mais ilegalidades o eleitor cometer ou aceitar no seu dia-a-dia, mais tolerante ele tende a ser com os atos de corrupção no Congresso.

Mídia paternaliza eleitores

Por isso, episódios como a dancinha da deputada petista Ângela Guadaligni no plenário da Câmara, comemorando a absolvição de um colega envolvido no esquema do mensalão, não devem chocar tanto o eleitor comum quanto chocou a imprensa.

Aliás, é curioso que a mídia, que cumpre um papel de mediador entre a classe dirigente e a sociedade, demonstre tanta indignação com casos de corrupção se, como mostra a pesquisa, os dois extremos dessa relação não lhe dão tanta importância.

Sílvia diz que a opinião pública aceita, e até espera, esse discurso por parte da mídia. Mas o comportamento é bem diferente. Ela acha que, embora a ética seja um valor absoluto, a maioria não vê dessa forma. As pessoas enxergam com gradações, em que é possível ser mais ou menos ético.

“Há uma tendência da mídia em paternalizar o eleitor”, diz Sílvia. Como se o cidadão fosse uma vítima da falta de ética de suas elites. Mas o estudo rejeita completamente essa vitimização do eleitor. Ele é cúmplice e se identifica com boa parte das transgressões cometidas.

Mesmo que a pesquisa trace um retrato bastante duro da classe política na ótica do eleitor. Entre os entrevistados (uma amostra nacional representativa do eleitorado):

82% acreditam que a classe política é desonesta;
73% acham que é preguiçosa;
87% acreditam que agem pensando somente em benefício próprio;
28% crêem que, após as CPIs, o Brasil será um país mais honesto (56% acham que continuará a mesma coisa).

Mas isso não deve fazer muita diferença na próxima eleição. Após a pesquisa, e com a experiência acumulada como diretora de um dos maiores institutos de opinião do país, Sílvia acredita que o escândalo do mensalão não afetará a forma de a população votar. A tendência é de que não ocorra uma grande renovação política. E a questão ética não será, naturalmente, o tema principal da campanha. “Pode até ser, mas será preciso um esforço muito grande de quem quiser usar isso.” No rescaldo do escândalo, ela avalia que o “timing” para fazer alguma mudança já passou. “A impressão é de que ficou o dito pelo não dito.”

Entre os motivos para isso, ela lista alguns. Acha que as responsabilidades ficaram difusas. Quem tinha uma prática diferente não mostrou isso. E, desta vez, a figura do presidente não ficou no centro da polêmica, como ocorreu com Fernando Collor. Além disso, ainda há uma identificação muito grande do eleitorado com Lula. “Certamente, seria mais difícil de perdoar outro político”, acredita Silvia.

Infelizmente, entre os mandatos dos dois presidentes, aumentou a desilusão com os rumos políticos. A esperança de que o Brasil se torne um país mais honesto diminuiu. Em 1992, no auge do processo contra Collor, 44% achavam que sairíamos melhor. Hoje, a despeito das inúmeras CPIs, esse índice é de 28%.

Até por isso, Silvia admite que é possível haver um aumento do voto nulo entre os eleitores de escolaridade mais alta e os formadores de opinião, até mesmo nas camadas mais populares. Seria um voto de protesto com a desilusão causada pelo comportamento do PT, que era visto por muitos como o último bastião de honestidade. “Afinal, se todos são iguais mesmo, o que fazer?”, questiona-se o eleitor.

Mas ela acha que o eleitor será pragmático. As razões do voto serão ditadas pelos benefícios que cada um poderá receber. E a visão do que é melhor para o país dependerá da ótica que cada um tem do Brasil e será filtrada pelos próprios interesses. “Seria utópico achar que as pessoas votam pensando no interesse coletivo.”

Quem quiser mais detalhes, poderá consultar o site do Ibope Opinião, que publicará toda a pesquisa em breve.